sábado, 4 de dezembro de 2021

uma música para o fim de semana - I'm Sitting in a Room (Alvin Lucier)


"I am sitting in a room different from the one you are in now. I am recording the sound of my speaking voice and I am going to play it back into the room again and again until the resonant frequencies of the room reinforce themselves so that any semblance of my speech, with perhaps the exception of rhythm, is destroyed. 
What you will hear then, are the natural resonant frequencies of the room articulated by speech. I regard this activity not so much as a demonstration of a physical fact, but more as a way to smooth out any irregularities my speech might have."

Assim começa I'm Sitting in a Room, a obra pivotal de Alvin Lucier. 
Data de 1969 e é o resultado de gravações consecutivas da sua fala sobre ela própria. Há uma gravação original, a primeira que é declamada por si. Depois entra num ciclo de reproduções e gravações sucessivas, uma por cima da outra. É curioso ver como estas gravações sucessivas vão perdendo o "sentido" da sua fala e discurso, vão se degradando, evoluindo, reconstruindo-se de uma forma completamente nova. Uma paisagem sonora abstracta, ressonante e aparentemente amorfa, contudo musical, com certas frequências a tornarem-se "agressivas" enquanto outras se uniformizam-se, se esbatem. A sensação de espacialidade, de volume ocupado mas também de distância, está sempre em crescendo até ao fim deste trabalho.
Como objecto de experimentalismo é fascinante ouvir esta obra.
O MoMA (Modern Museum of Art) de Nova Iorque adquiriu I'm Sitting in a Room para sua colecção de arte sonora.
Aliás, a gravação que proponho para este fim de semana, é realizada numa sala do próprio MoMA.

Alvin Lucier, cuja formação musical de base é a música clássica, é um apreciador de jazz desde jovem. No entanto é com compositores como Merce Cunningham, Karlheinz Stockhausen, John Cage e David Tudor, que sofre e reconhece a influência e a importância que nele tiveram, apesar de depois ter percebido que o seu caminho teria um percurso diferente do deles. Tendo trabalhado com alguns destes nomes, terá sido com os dois últimos que trabalhou de uma forma mais próxima e cuja influência terá sido mais intensa.

O compositor clássico torna-se quase um cientista, um tecnológo, um explorador do som. 
Sabe que as temperaturas ambientais, variações do volume do espaço, da acústica, a presença de pessoas, podem influenciar de uma forma determinante o resultado final de uma instalação, de uma paisagem, de uma peça sonora e respectiva gravação. Joga com enorme intuição e mestria essas mesmas variáveis para produzir novos resultados com as mesmas obras.
É isto que acontece com outra obra importante de Lucier, e igualmente reconhecida internacionalmente - Music on a Long Thin Wire - o título diz tudo sobre ela. Tata-se de uma instalação sonora onde um longo e fino fio é esticado ao longo de um determinado espaço, cujo som é captado por microfones quando este é colocado a vibrar.
Lucier escreveu que uma "audição atenta é mais importante que produzir sons."


Para quem ouviu o início de I'm Sitting in a Room, terá certamente reparado que Lucier gaguejou em certos trechos do texto, de facto o seu autor era mesmo gago. São as imperfeições do discurso que menciona no fim do referido texto.

Este compositor norte-americano, um dos mais relevantes experimentalistas e educadores da arte do som, morreu na quinta-feira passada, 02.12.2021, com noventa anos, vítima de uma queda.
Não sendo fácil apreciar, pelo menos num sentido clássico de música, a obra de Alvin Lucier, esta vale a pena ser explorada. Se pensarmos nela menos em termos de música, mas mais na perspectiva de som, de arte e de exploração sonora, que é de facto, ajude.


Bom fim de semana 😉










quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Se os gatos desaparecessem do mundo - Genki Kawamura


Então o que seria? A minha vida ou os gatos? Naquele momento, não podia imaginar a minha vida sem o Repolho. Tinham passados quatro anos desde que a mãe morrera. O Repolho estivera sempre ao meu lado. Não podia eliminá-lo. Mas o que eu podia fazer?


Não fosse o título do livro - Se os Gatos Desaparecessem do Mundo - e não o teria comprado.
Mas com um título destes como não o fazer?

Conta a história de um carteiro que vive sozinho, com o seu querido gato Repolho por companhia, a quem de repente lhe é diagnosticado um tumor cerebral inoperável, grau 4, e lhe dão poucos dias de vida. Uma semana, mais concretamente.
Confrontado com a notícia, o carteiro de trinta anos decide fazer a habitual lista das últimas coisas a fazer antes de morrer.
É nesta altura que o Diabo surge e lhe propõe um negócio algo bizarro: por cada coisa que o carteiro fizer desaparecer do mundo, este ganha mais um dia de vida. 
Pensando que pode fazer desaparecer pequenas e inocentes coisas e com isso ganhar dias de vida até chegar a velho, o jovem aceita. Tratando-se do Diabo, naturalmente que a proposta feita não é tão inocente quanto isso. No entanto, dia a dia, uma a uma, o carteiro vai aceitando as propostas do Diabo, até que chega a um ponto em que percebe que há limites que não podem ser pisados.

Com base nesta proposta diabólica, claramente de inspiração faustiana, o autor deste romance, o japonês Genki Kawamura, leva-nos a reflectir sobre a morte, a perda e o relacionamento pessoal, a importância da reconciliação, sobre a relativização da relevância que damos aos objectos.

De leitura escorreita e fácil, o livro lê-se de rajada, uma tarde de sábado no meu caso. Coloca-nos sem dificuldade na pele do carteiro e leva-nos a pensar que faríamos, que decidiríamos, se estivéssemos na sua situação. 
Apesar de o título ser particularmente atraentes para "gateiros", o que explica o sucesso que teve no Japão, país que tem uma relação muito especial com os pequenos felinos, reduzir este livro só para esta pessoas é um profundo erro.









quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

terça-feira, 30 de novembro de 2021

um poema de... Fernando Pessoa (em 86 anos da sua morte)


Se eu morrer novo

Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.

Fernando Pessoa (07.11.1915)


Incrivelmente, Fernando Pessoa morre sem fazer a mínima ideia saber o que se iria tornar no futuro, a relevância que teria no mundo das letras, a universalidade que atingiu. 
Morre quase anónimo, apenas com um livro publicado em vida - Mensagem