sábado, 21 de janeiro de 2017

uma música para o fim de semana - Pro'seeds


É atribulada a vida do Quim mais conhecido do país.
Parece ser um sem abrigo da vida. A desgraça caiu-lhe bem cedo no colo.
Antes de ser baptizado, já era sócio do Dragão e tinha a avó roubar-lhe as papas Cerelac...


Se o Quim que os Pro'seeds (Berna, Serial e DJ Score) cantam, e que aparece no seu primeiro trabalho chamado Soft Power Sagrado, e o Chico Fininho do Rui Veloso e do Carlos Tê, do longínquo ano de 1980, se encontrassem seriam bons amigos.
Ambos estão perdidos na vida, mas encontraram-na nas ruas. Entre eles há uma diferença de mais de trinta anos Mas há coisas que não mudam. E estes dois quase que poderiam ser irmãos gémeos desencontrados.

O primeiro andava com as beatas da Foz, o outro com merda na algibeira. E se o Chico delirava com trips de heroína, o Quim trafica coca.
Diria que o desfecho foi radicalmente diferente para os dois men. Acredito que o Chico tenha morrido de overdose e de caganeira nas retretes, enquanto que o Quim partiu para o mundo. Aposto com bigode farfalhudo a tapar-lhe os lábios, cordão grosso de ouro ao pescoço, a falar tão alto que ensurdeceria um cão, e convencidíssimo que era fino.

E como o que nasce torto jamais se endireita, mesmo tendo conseguido sair das barracas, as barracas não chegaram a sair dele. Sendo um cidadão do mundo, o desbocado Quim não se vai esquecer da primeira palavra que disse...


Bom fim de semana 😀






Ele nasceu no Porto no Hospital São João 
antes de ser baptizado já era sócio do Dragão 
o Pai dele era o Nando mas ele ficou-se por Quim 
a Mãe bulia por turnos da Rua do Bonjardim 
com poucos meses falou e soletrou P.u.t.a. 
até a Avó lhe roubava as papas de Cerelac 
que a cota comia a ouvir a rádio romântica 
baladas do Toni de Matos são partes da sua infância 
tinha um brinco de ouro que o irmão o roubou 
faz sentido foi o próprio que a orelha o furou 
em frente ao retrovisor dum Citroen Ax 
era o que tinha desmarcado por baixo do beliche 
a kitchenette era um antro de grunhos a partir telas 
o seu bairro era isolado como ilhas dos arquipélagos 
sair de lá era mentira tinha que se ir a buts 
passar por prédios uma bouça e duas escalas no bus 

Era uma vez um sócio que conheci 
tinha outro andamento o seu lugar não era aqui 
o nome dele era Quim e não mandava recados 
fazia a festa com pouco o que o tornava engraçado 

Ele parava no Rocks e com as betas da Foz 
á tarde treinava boxe á noite comprava pó 
infiltrava-se em qualquer meio já estava a ficar patrão 
cantava sempre de galo pois tinha mais protecção 
contactos até da moda vendia coca ao Serrão 
ligavam-lhe a pedir sheilas para os estágios da selecção 
já estava com outra pausa deixou o papel de peixinho 
tinha um iate no Algarve e um terreno no Minho 
feiras vinho roupas de linho e Domingos de hipismo 
de Verão surfava á noite praticava alpinismo 
estava na casa dos 30 andava de roda no ar 
até conhecer a Cátia e decidir assentar... 

Casou teve 3 filhos acabou-se o glamour 
estava efectivo e farto de montar placas pladour 
em vez dum maço numa noite só parou no Sá Carneiro 
tinha um control na Holanda dum mano do Lagarteiro 
e foi para lá em low-cost para trabalhar numa estufa 
curtiu comeu de tudo desde rolhas a fufas 
instalou-se num bungalow até apranchar-se a uma loira 
meio metro mais alta do que ele feia mas grande toura 
no emprego chamavam-lhe o "portuguese" 
no dia do pagamento faltava para dar uns snifs 
na coffee queria dar micos aos filtros que eram de graça 
mas nunca se embaraçava mandava-se sempre para a praça 
o fim é assim nunca mais vi o Quim 
provavelmente ele nem se lembra de mim 
tornou-se um cidadão do Mundo no fundo nunca mudou 
tentou esquecer quem era mas o bairro nunca o deixou 

Era uma vez um sócio que conheci 
tinha outro andamento o seu lugar não era aqui 
o nome dele era Quim e não mandava recados 
fazia a festa com pouco o que o tornava engraçado




quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Ary dos Santos 33


Soneto

Fecham-se os dedos donde corre a esperança, 
Toldam-se os olhos donde corre a vida. 
Porquê esperar, porquê, se não se alcança 
Mais do que a angústia que nos é devida? 

Antes aproveitar a nossa herança 
De intenções e palavras proibidas. 
Antes rirmos do anjo, cuja lança 
Nos expulsa da terra prometida. 

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo, 
Antes o olhar que peca, a mão que rouba, 
O gesto que estrangula, a voz que grita. 

Antes viver do que morrer no pasmo 
Do nada que nos surge e nos devora, 
Do monstro que inventámos e nos fita. 


José Carlos Ary dos Santos


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

um poema de...Miguel Torga (nos 22 anos da sua morte)


Ninguém conhece o Dr Adolfo Correia Rocha. Nasceu em 1907, na zona raiana de São Martinho da Anta, a rasar a cidade de Vila Real.

A sua vida de Adolfo, começa de uma maneira dura e atribulada. Com uns escassos 10 anos parte para o Porto. Bateu quase todos os postos humildes. Foi porteiro, moço de recados, limpava escadas e tratava de jardins.
Em 1918 frequenta o seminário. Toma contacto com os textos sagrados, com o latim e com outras disciplinas. Apesar de decidir que não quer tornar-se padre, será aqui as letras subtilmente entram em si,

Aos 13 anos parte vai para o Brasil para uma fazenda de um tio. Aqui foi capinador e vaqueiro. O tio reconhece-lhe inteligência manda de volta para Portugal e paga-lhe os estudos. Concluí os estudos do liceu e em 1928 entra na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e torna-se otorrinolaringologista.
Verdadeiramente a medicina não era a sua paixão. No mesmo ano em que entra em Medicina, publica o seu livro de poesia Ansiedade.
A partir daqui, a sua obra literária, não para de crescer e torna-se vasta. Contam-se às dezenas os livros que publicou de prosa e poesia.

Em 1934, tinha 27 anos, o Adolfo Rocha toma uma decisão que o marcará, e nos marcará para a vida.
Decide honrar dois grandes escritores pelos quais tinha uma grande admiração, Miguel Cervantes e Miguel Unamuno.
Tal como as suas raízes serranas, bravias, da montanha, o escritor nunca esqueceu as suas origens, o arbusto torga, cujas cores podem ser brancas, rosadas e arroxeadas, no qual se reconhece e igualmente admira.
Junta os dois nomes e torna-se... Miguel Torga.

Ele é um contista de excelência, romancista, ensaísta, dramaturgo e um poeta extraordinário.
E é esta última face, a de poeta, que mais me atrai nele.
Miguel Torga morreu no dia 17 de Janeiro de 1995 em Coimbra. Faz hoje 22 anos.


Torga tem um poema, que prima pela delicadeza, pela elegância, que define maravilhosamente o que é a poesia.
Deveria ser, talvez, o primeiro poema que se deveria ensinar às crianças. Uma maneira de as tornar receptivas à poesia, de as fazer abrir os braços, a uma forma de literatura, muitas vezes, pouco admirada, pouco lida, pouco ouvida e muito pouco ensinada

"Não tenhas medo, ouve:" é pessoalmente, o seu poema mais bonito e singelo, o mais simples e puro.
É o que mais me atrai, o que mais me fascina e o que mais me ensinou.


Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz... 


Miguel Torga, diários XIII



segunda-feira, 16 de janeiro de 2017