Enquanto vou continuando a revisitar o álbum 88 dos Xutos & Pontapés, encontro Doçuras.
Pessoalmente considero um dos temas mais subvalorizados do álbum que celebra este ano 30 anos.
É uma canção de amor melancólica, de uma simplicidade e sinceridade a toda prova.
As guitarras são tocadas de uma forma gentil e minimal e o assobio quando entra em cena é a companhia perfeita para elas.
Comparado com os outros eras um titã. Grande. Grande mesmo.
Eras tão grande que a única roupa que encontraram para ti era rosa. E assim vestiram-te. Ficaste incrível. Tão belo, tão belo que era difícil acreditar que eras meu. Dormias na inocência dos que são supostamente protegidos pelos Deuses.
E no entanto a tua fragilidade era tão grande quanto o teu tamanho. Houve Alguém que se esqueceu de ti, que recolheu a asa sobre ti quando ainda dela estendida precisavas.
E o amor de uma mãe, por muito que se diga o contrário, não é suficientemente poderoso para te proteger quando esse Alguém se esqueceu de ti.
E no entanto esse mesmo amor consegue amar de tal forma, ver tão longe, tão à frente, que percebe coisas que os outros não conseguem perceber.
E quem te amou tanto como eu, que te ama tanto quanto eu, cantava uma canção que te embalava e suavizava o tormento que vivias, o mundo estranho e escuro em que estavas mergulhado.
Essa voz, doce, dolente e encantada, cantava essa canção, com uma ternura, com uma protecção, com um amor tão grande que só ela seria capaz de cantar. Cantava para ti e para ela. Para se suportar, para ganhar forças numa canção cuja letra poderia ter sido escrita por si e para ti.
Assim era a canção que cantava para ti e para si própria.
Na mitologia grega Pigmalião era o rei de Chipre e um escultor admirado pela perfeição e beleza das suas estátuas.
O rei escultor há muito que procurava a mulher dos seus sonhos. Sempre que encontrava uma mulher que pensava que estava à altura do que almejava, algo corria mal.
Desesperado, Pigmalião pega no seu mais belo bloco de mármore branco e projecta nele, todas as suas expectativas, todos os seus desejos, tudo o que uma mulher deveria ser. Quando acaba, a estátua final era tão bela, tão perfeita, que ele se apaixona por ela. Chamou-lhe Galateia.
Construiu um altar, fez oferendas e orações apaixonadas a Afrodite, a Deusa do Amor e da Beleza para que concedesse vida à estátua. Afrodite rendeu-se aos pedidos do rei cipriota e a estátua ganhou vida.
Como um tosco Pigmalião das letras e não tendo acesso ao poderia ter sido, posso projectar e escrever o que poderia ter sido. Porque apaixonado já o estou. Há dezoito anos ando neste estado límbico, platónico, de amar o que já não pode ser amado.
Garantidamente... alto e bonito. Não poderia ser de outra maneira, dizem-me.
"Tem a quem sair. De um lado e do outro."
Diria, que estarias na casa do 1.90m.
Olhos claros. Apontaria para os verdes, mas não puros. Neles, a cor castanha seria razoavelmente identificável. Penetrantes mas sem julgar.
Inteligente? Sim, claro que sim. A um nível normal. O seu sorriso não seria aberto ou rasgado, mas contido. Delicado e elegante. Cativante? Muito.
Feitio? Não é difícil de adivinhar. Seria difícil. Vontade própria bem marcada. Reservado e curioso.
Gostaria de música, livros e de arte. Preferiria os contemporâneos aos mestres. Mais atraído pelo que pode ser trilhado do por aquilo que já foi trilhado. Mas seria um bom conhecedor dos clássicos e da importância deles para o que ainda terá que ser descoberto.
Reconheceria boa parte das constelações do céu e as estrelas nunca cessariam de o fascinar.
Por inerência, as mitologias do mundo não lhe seriam de todo estranhas.
O que gostaria de ser? Não sei.
Não me parece relevante para alguém que faz hoje 18 anos. Pedem-nos para escolher algo para a vida quando não nos conhecemos, não conhecemos o mundo, em que as pessoas mais relevantes na nossa vida se resumem apenas aos pais e à família. Pedem-nos o que ser no futuro baseado apenas em meia dúzia de pessoas e experiências. Não é justo. Não te pressionaria nesse aspecto.
Mas enquanto um mau Pigmalião das palavras escritas, projecto para tudo o que pudesse ser relevante para a evolução do conhecimento do Homem, no passado ou no futuro. Seja nas letras, seja nas ciências.
Amaria e seria nobre perante a vida senciente. Perceberia o que é sofrimento. Respeitaria a vontade de viver de todos os animais. Teria um amor grande ao seu planeta, à necessidade de o proteger, de o acarinhar, de o respeitar. De o amar.
O tempo é algo de extraordinário. "O tempo tudo cura" diz o provérbio.
Dilui na distância dos dias, dos meses, anos e décadas, a acutilância da dor. Habituamo-nos a ela, à sua existência, à sua omnipresença.
À saudade, não. Aos flashes vindos do nada ou despoletados por algo que nem sabemos o quê, da memória revoltada e não domável, também não.
Isso, a seta do tempo não nos protege.
Não sei como é ter-te, mas sei como seria não ter-te tido. Mau, mau demais.
Provavelmente o que conheço, o que já vivi, o que viverei, o que já experimentei e terei que experimentar, o que chorei e o que ainda está para ser chorado, o que amo, amarei e o que agora sou, é um legado teu.
Não sei se voltarei a estar contigo, dar-te as mãos, brincar, correr e falar contigo. Saber o que aconteceu ao longos de tantos anos não partilhados. Mas pelo menos um dia vou para o mesmo sítio para onde foste há 18 anos. Talvez até estejas à minha espera. Não sei. Depois logo se vê.
Entretanto talvez Afrodite atenda os meus desejos.