sábado, 15 de dezembro de 2018

uma música para o fim de semana - Sam the Kid


Sam the Kid, também conhecido por STK, em Sendo Assim tem uma letra muito autobiográfica.
Remete para momentos recuados, e perdidos, como quando canta:

No tempo em que eram só maquetas, os rappers eram autores
Cantores eram poetas e poetas eram pintores

... e os poetas eram pintores. Para os novinhos, este verso refere-se às notas de 100 escudos que tinham as imagens de Bocage e Fernando Pessoa e que no calão da rua, nas conversas ligeiras, estas notas apelidadas de pintores.

O ponto forte do hip hop sempre foi e sempre será os conteúdos, as mensagens mais ou menos directas que as letras contêm. STK canta na música para o fim de semana, das suas origens, do que foi, do que é e como não se alterou com o passar do tempo, com o aumentar do sucesso.


Bom fim de semana ☺




Há um silêncio que ainda me ensurdece
Uma incerteza na pertença, ou para ti sou guest?
Tá tudo inverso e o mundo diverte-se, é um dissabor
Como nunca houvesse quem visse o verso e ouvisse a cor
Ouve esse amor e essa dor a ceder
Eu não sou ameaçador, o meu sabor é saber
O que faço não é básico, dou o máximo por um clássico
Não é fácil, cada frase, cada traço no meu a5
Marvila é vida, é a vinha que eu engarrafo
Tou na minha e eu nunca sigo a mesma linha, eu paragrafo.
Tenho sede na cabeça e a cabeça no dedo
Mas quando sonho tenho medo que adormeça na rede
Há suor em cada poro, organizo o que eu decoro
Indeciso que eu deslize e é por isso que eu demoro
Faço algo que eu adoro e ignoro o prazer ruim
Eu não quero ser o melhor eu melhoro a fazer de mim
Nunca tive uma ambição com a ilusão de uma aderência
Porque ter a profissão não é missão, é consequência
Não me rendo à influência e na falência eu direi
Que não preciso de uma venda, não sou deusa do direito
O meu livro é exclusivo e é universal
Fui compulsivo no cursivo e não morri vassalo
Com a sony digital ganhei a noção da lente
Para um dia ser imortal como a nação valente
Visão fluente e é quando a mente me elucida
A que eu siga em frente e nunca retroceda na subida
O segredo para a (saída) não é subir altitudes
É quando aponto o im(porta)nte, é quando nomeio virtudes
A glória mora onde eu pertenço e o apreço condecora
E eu tou preso a este peso que me ancora
O som desempregou-me, a zona suportou-me
Sonda quem ambiciona, ninguém sonha ser mordomo
Para putos radicais nada é “phat” se é antigo
Mas eu não vou ser mais um arquitecto sem abrigo
Não entro na moleza e no que a incerteza traz
Um dia é muito tempo quando tem um talvez atrás

Sendo assim, a cena sai sem pressões
Sinto o som sem pensar em aceitações
É a trajectória de outros craques de outras gerações
Conto estórias onde fracos têm orações
Sendo assim, a cena sai sem pressões
Sinto o som sem pensar em aceitações
Eu queria sumo, queria alunos com informações
Não há dumbos, só cardumes sem recordações

Se a arte é altruísta, não é o que eu vi no topo
Porque o trono é egoísta nada filantropo
Lancei me e nunca bazei assim que saquei o dobro
Estou grato pelo passeio, eu ziguezagueio o globo
E guardo notas de rotas poliglotas
Em hotéis só muda o lençol é ver o sol e voltas
Para quê fazer um álbum se ele dura meses
Por vezes sinto que ainda estamos na moldura presos
Na era pura, com todos na cultura tesos
Quando a vibe era insegura, eu sou da altura desses
Sem prazos, sem preços
Sem maços, sem interesses
O principio do inicio ainda mantêm se ileso
No meu oficio o que é difícil é manter silêncio
Agora há muita coincidência para ser coincidente
Foi tudo um acidente, e não há um esclarecimento
No tempo em que eram só maquetas, os rappers eram autores
Cantores eram poetas e poetas eram pintores
Eu soube o que é coragem quando a luz era uma réstia
Eu sei que há uma miragem na indústria da modéstia
Eu vim da arte da rima séria , quando o clima era intenso
Uma era linda quando ainda ninguém ria por extenso
E hoje em dia , não há sabedoria, sem noção, sem senso
E a maioria são uma diversão circense
Eu oiço manos veteranos e tu quantos sentes
Na life de mc sem remanescentes
Que ainda rimam e fazem trabalhos consistentes
E nunca ficam à espera que um dia tu sustentes
Vi sonhos divinais,
Vi mil desilusões que trazem muitos afinais
O assédio não me embala e eu na calma nem respondo
A um armazém que esconde almas em desconto
Prefiro fazer trips invulgares no meu kit de cinco lugares
Vou para longe não me fixo em ver clicks e polegares
E eu só digo obrigado, por viver com agrado
Por ter uma vida assim, e não assim

Sendo assim, a cena sai sem pressões
Sinto o som sem pensar em aceitações
É a trajectória de outros craques de outras gerações
Conto estórias onde fracos têm orações
Sendo assim, a cena sai sem pressões
Sinto o som sem pensar em aceitações
Eu queria sumo, queria alunos com informações
Não há dumbos, só cardumes sem recordações



sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

um poema de... Mia Couto



Solidão

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas


quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Nut - porque a noite também é (muito) bonita



Dizem que é muito "feiinha" ou que é feia como a noite.

Admito que tal seria verdade se houvesse animais feios, que não há. Muito menos quando se fala de gatos.

É uma gata adulta tricolor, muito escura em que os laivos de dourados e brancos estão escassamente dispersos na pelagem que não chega a ser negra. Poderia ter sido pintada por Pollock nos seus piores dias...
Foi atropelada mas sobreviveu a custo. As sequelas são bem visíveis: lesões na coluna, a parte traseira tem uma certa desproporção, desequilíbrios ao andar porque tem as patas desalinhadas e uma certa dificuldade em saltar e por vezes em levantar-se. A cauda está amputada pela metade e tem problemas de bexiga, porque vai uma quantidade de vezes anormal ao longo do dia à caixa de areia.

Estava há seis meses a viver numa clínica. Ninguém a queria por todos os motivos acima. Com a morte do Mahler abriu-se uma "vaga" para outro gato que não ninguém quisesse, que ninguém ultrapassasse a questão do não ser bonitinho e que não fosse capaz de ver que acima de tudo é um ser vivo que gosta e precisa de carinho e protecção.

É uma gata meiguinha, positiva, calma e boa onda. Tem um miar esganiçado e um ronronar maravilhosamente tão desengonçado e desajeitado quanto ela. Os seus olhos são do tamanho do mundo e parecem estar permanentemente pasmados. São profundamente negros e tornam-se autênticos buracos negros quando as meninas dos seus olhos expandem ao máximo.
Está a ainda a aprender a lidar com os restantes felinos da casa.

E como acredito, e sei, que a noite é bonita dei-lhe o nome de Nut.
Nut é a deusa egípcia dos céus de dia e de noite, do firmamento. É a deusa mais poderosas do panteão egípcio. Dela nasceram os principais deuses egípcios: Osíris, Ísis, Néftis e Seth
É representada por uma mulher arqueada, protegendo a Terra, onde ao longo de todo o seu corpo estão dispostas estrelas.

Não sei se Nut vai viver muitos anos, mas os que viver, garantidamente vão ser o máximo para ela.