sábado, 25 de março de 2017

uma música para o fim de semana - Wordsong



Al Berto?? De Alberto Raposo Pidwell Tavares.
Um poeta praticamente desconhecido do público, mas nem tanto do meio literato e artístico; além de poeta era escritor e pintor; em que se mexia e fazia parte.
As suas origens estão longe de serem modestas. Alta burguesia e de uma família britânica fortemente conservadora.

Al Berto cedo demonstra a irreverência que o caracterizaria e o seu distanciamento relativamente aos valores conservadores com que foi educado e estava imerso. Veste-se de uma forma ultrajante para a época e particularmente para a sua família: calças de ganga e ténis, usualmente velhos e rotos.
Um estilo, desprendido de valores materiais e muito presente na juventude da sua época, uma juventude de protesto, a geração beatnik.
É assumidamente gay e discute abertamente a sua sexualidade, algo que a sociedade não estava verdadeiramente disponível para ouvir.


Em 2002 forma-se um agrupamento - Wordsong - formado por três músicos provindos de três bandas que davam cartas. Pedro D'Orey dos Mler If Dada, extintos em 1990, Alexandre Cortez dos Rádio Macau e Nuno Grácio dos extintos Ravel.
Os Wordsong nasceram para divulgar a obra de Al Berto, mais tarde abraçariam a poesia de Fernando Pessoa. De Al Berto musicam quinze poemas.
Deles, escolho 14 de Janeiro. Um poema pouco valorizado da obra do poeta conimbricense nascido em 1948 e que morreria no mesmo dia, não no mesmo ano, em que morreu Fernando Pessoa: 13 de Junho de 1997.

14 Janeiro, é abordado de uma forma determinada. É uma canção cheia de força, energia e hipnotizante. A frase que se torna um refrão, e que mostra a ligação de Al Berto à natureza, algo que o autor afirmava que o caracterizava, é tornada obsessiva pela voz e pelo timbre tenso e determinado de Pedro D'Orey.

Este 14 de Janeiro é um pequeno tesouro. E como tesouro que é as suas moedas devem passar repetidamente pelas nossas mãos. Ouvidos.


Bom fim de semana ☺





14 de Janeiro

Todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
Escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
Curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
Desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
Sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer. que mais posso desejar?
E no entanto, não estou alegre nem apaixonado. Nem me parece que esteja feliz.
Escrevo com um único fim: salvar o dia.



terça-feira, 21 de março de 2017

um poema de... Ricardo Reis (no Dia Mundial da Poesia)


Fernando Pessoa é o meu mais que tudo na poesia,
No dia mundial da Poesia, que hoje se comemora é quase impossível não recorrer a ele, ou a um dos seus heterónimos.

Mais concretamente o epicurista sereno e pagão Ricardo Reis, discípulo maior do grande mestre Alberto Caeiro.


Segue o Teu Destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.


Ricardo Reis, Odes



segunda-feira, 20 de março de 2017

um poema de... Pablo Neruda (no dia da Primavera)






Poema 14

Brincas todos os dias com a luz do Universo.
Subtil visitadora, chegas na flor e na água.
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto
como um cacho entre as mãos todos os dias.

Com ninguém te pareces desde que eu te amo.
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.
Quem escreve o teu nome com letras de fumo
entre as estrelas do sul?
Ah, deixa-me lembrar como eras então,
quando ainda não existias.

Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.
Aqui despe-se a chuva.

Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.

Tu estás aqui. Ah tu não foges.
Tu responder-me-ás até ao último grito.
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha
pelos teus olhos.

Agora, agora também pequena, trazes-me madressilva,
e tens até os seios perfumados.
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.

Quanto te haverá doído acostumares-te a mim,
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam.
Vimos arder tantas vezes a estrela d'alva beijando-nos os olhos
e sobre as nossas cabeças destorcem-se os crepúsculos
em leques rodopiantes.

As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.
Creio-te mesmo dona do Universo.
Vou trazer-te das montanhas flores alegres, "copihues",
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.

Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeiras.


Pablo Neruda


série "estatísticas da vida" - CCXVI


Saltitando delicadamente de branco em branco 😉