sábado, 19 de fevereiro de 2022

uma música para o fim de semana - Casa no Campo (Capicua)


Diz-me qual é o teu perfume favorito?

Por três vezes é perguntado a Capicua esta pergunta e por três vezes esta responde: 

Pão quente, terra molhada e manjerico

Esta pergunta qual o teu perfume favorito já a fiz a mim próprio várias vezes. Se pudesses criar um perfume o que porias lá dentro? Pessoalmente, retiraria o manjerico e acrescentaria o aroma a relva acabado de cortar.

Este é o tipo de hip hop que me cativa em Capicua. Não tem aquela enxurrada de rimas que se atrapalham uma às outras  em frases confusas e rápidas que se pretendem recheadas de irreverência, mensagens de intervenção, anti-sistema, etc..., etc...
É um hip hop normal que conta histórias de vidas normais de pessoas normais. É um hip hop autobiográfico e que portanto com alguma facilidade fala connosco e nos revemos nele.

É na faixa Casa no Campo, do álbum Sereia Louca de 2008, que encontramos esta, diria eu, singela pergunta. Para além da referida pergunta, a tal que tanto gosto, fascina-me a guitarra. É apenas ela que acompanha a voz de Capicua.
Simples, calma, reflectida. Bem no oposto do ritmo sincopado e estereotipado do hip hop que nos inunda os ouvidos durante os sempre excessivos minutos (por poucos que sejam) que duram essas canções.

Já é a terceira vez que Capicua aparece no palco da Esteira.


Bom fim de semana 😉





Eu sei o que que eu quero
Quero de preferência não sair da minha casa
Aquela casa, específicamente, essa casa
Eu sei que eu não vou abrir mais mão da minha horta
E isso não é questão de idade
Eu acho que isso é uma questão de oposição
Eu quero uma casa no campo como Elis Regina
Plantar os discos, os livros, e quem sabe uma menina
Por mim até podem ser mais, um amor como aos meus pais
Os dias como os demais, sem serem todos iguais
Casa no campo com a porta sempre aberta
Deixar entrar amigos, partir à descoberta
Ter a minha cama grande, a colcha predileta
E um cão desobediente em cima da coberta
Eu quero uma casa completa com um pedaço de terra
E com espaço, quero o tempo adormecer na relva
Longe da selva de cimento
Eu acrescento que quero cultivar mais do que mero conhecimento
Quero uma horta do outro lado da porta
E quero a sorte de estar pronta quando a morte me colher
Quero uma porta do outro lado da morte
E ter porte de mulher forte quando a vida me escolher
Quero uma casa no campo que cheire à flores e frutos
A gomas e sugos, a doces e sumos
Cozinhar para quem quer comer, comer como sei viver
Com apetite, já disse, que não quero emagrecer
Comer de colher de sopa, fazer pão, estender a roupa
Faço pouco das bocas que me dizem p'ra crescer
Eu quero rasgar janelas nas paredes cujas pedras
Carregar com as mãos que uso para escrever
Casa no campo com lareira e fogo brando
Que ilumina todo o ano, sorriso de quem amo
Quero uma casa no campo que pode ser na cidade
Mas tem de ser de verdade, mesmo não tendo morada
Onde é que aprendeste o que é o infinito?
Foi na contracapa de um livro da Anita
Diz-me qual é o teu perfume favorito?
Pão quente, terra molhada e manjerico
Onde é que aprendeste o que é o infinito?
Foi na contracapa de um livro da Anita
Diz-me qual é o teu perfume favorito?
Pão quente, terra molhada e manjerico
Diz-me qual é o teu perfume favorito?
Pão quente, terra molhada e manjerico
Pão quente, terra molhada e manjerico
Anda viver comigo, colamos o nosso umbigo
E não passaremos frio no nosso lugar estranho
Anda viver comigo, colamos o nosso umbigo
E não passaremos frio no nosso lugar estranho
Ok!
Um filho, um livro, um disco, uma árvore
Um filho, um livro
Um filho, um livro, um disco, uma árvore
Um disco, uma árvore






quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

um poema de... Manuel António Pina (no dia mundial do Gato)


Escrevo frequentemente o que o gato é tão especial que não só tem um dia mundial que lhe é dedicado como de facto tem dois: o de hoje, 17 de Fevereiro e outro, no dia 8 de Agosto.

Celebremo-los, admiremo-los e cuidemos deles como se fossem um de nós, porque acabam por o ser. 
Mesmo quando parecem que têm um alien a viver dentro deles...


Os gatos

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

Manuel António Pina, “Os gatos”, Como se desenha uma casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.





quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Fine


E por detrás de um sorriso, da normalidade de um comportamento, de alguém reservado e simpático. Por detrás da aquela pessoa que não esperamos que algo de surpreendente seja feito ou aconteça, pode estar algo insuportável, algo que não aguentemos mais dentro nós: um peso que nos manieta e que nos inquieta. Uma raiva persistente, uma frustração demasiado presente. Demónios que nos assolam, que nos perturbam e canibalizam a um ponto tal em que um equilíbrio esforçado e precariamente mantido por muito tempo... cede. Por vezes subitamente, por vezes com um prévio aviso, mais ou menos subtil.

"Ele era simpático, tinha boas relações com todos, não se metia na vida de ninguém, cumprimentáva-nos e sorria. Não compreendemos como pode ele fazer isto. Estamos todos em choque."
Pois. E no entanto estava... Fine. 







 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

vem depressa, doce chuva







Time's Passage - Enrico Pieranunzi


Valse Pour Appolinaire é um dos vários temas vocais que compoem o álbum Time's Passage do pianista italiano Enrico Pieranunzi. A voz é da cantora milanesa Simona Severini. Diz quem sabe que o seu francês, apesar de ser muito bom, tem no entanto um subtil sotaque que denuncia as suas origens italianas.

Pessoalmente é uma das minhas canções preferidas deste trabalho de Pieranunzi. Ter em atenção também ao tema de abertura e homónimo do álbum. Não se deve, no entanto reduzir o álbum a estes dois temas. Todo ele é muito boa onda, cheio de grandes vibrações e super positivo. O vibrafone de Andrea Dubelcco, talvez um dos grandes trunfos deste álbum, se não o maior, espalha sobre ele uma enorme sensação de leveza, descontração, de que o tempo passa facilmente, por todo o álbum.

A somar ao piano e ao vibrafone está a sofisticada e subtil, mas não menos presente, bateria de André Ceccarelli e o contrabaixo de Luca Bulgarelli. Estes dois últimos perfeitamente entrelançados entre si dão um apoio perfeito ao piano de Pieranunzi.
Este quarteto, quinteto se pensarmos também em Simona, não só nos temas vocais, funcionam tão bem quanto um conjunto de quatro grandes amigos que num banco de jardim num dia de sol primaveril, tagarelam e sorriem entre si despreocupadamente, saltando de tema em tema como quem tira cerejas à vez numa caixa tupperware.

Apesar de ter usado e evocado uma imagem solarenga - uma associação que faço frequentemente à sonoridade do vibrafone - consigo perfeitmente imaginar este trabalho desta formação liderada pelo pianista italiano a tocar de uma forma aconchegante em dias de chuva onde a lareira crepita para suavizar o frio dos dias de inverno. A voz aveludada de Simona Severini contribui muito para isso. 
Time's Passage é uma grande companhia para um jantar romântico, de amigos, uma tarde a preguiçar com um copo, ou um livro, na mão. Definitivamente é um album "all year round". 

Time's Passage foi lançado em 2020. 
Apesar de claramente ter uma preferência pelo jazz instrumental, a voz de Simona Severini é absolutamente encantadora e envolvente. Traz um enorme charme e mais valia às faixas onde participa.
Não será um álbum charneira na discografia de Pieranunzi mas foi este muito prazeroso equilíbrio entre os diversos instrumentos e voz que me fizeram comprá-lo.
E vai rodar frequentemente na minha sala.