sábado, 20 de novembro de 2021

uma música para o fim de semana - Retalhos da Vida de um Médico (Tozé Bito escolhe Camané)


A ideia é tão simples quanto de boa. Pegar nas cerca de quinhentas (!!!) canções que o músico e compositor Tozé Brito, actualmente com 70 anos, escreveu nos últimos cinquenta anos, pedir ao mesmo que escolha setenta delas e depois por sua vez pedir a catorze músicos que escolham uma e cuja tarefa é reinventá-las, desconstruí-las e finalmente editar em disco. Existindo duetos, o número final de músicas foram doze.

Camané, Samuel Úria, António Zambujo, Selma Uamusse e Catarina Salinas dos Best Youth, foram alguns dos escolhidos.
O resultado, ideia original de Inês Meneses e actual companheira do compositor, chama-se Tozé Brito (de) Novo. A produção e os arranjos musicais ficaram sob responsabilidade de Benjamim e João Correia. O disco foi para as prateleiras há pouco mais de uma semana, no dia 12 de Novembro.

Não por acaso, coloquei em primeiro lugar da lista de cantores, aquele que mais aprecio para dar voz a uma música para o fim de semana: Camané.
Talvez por acaso, este fadista, pessoalmente o melhor de todos, escolheu uma das músicas que mais aprecio de Tozé Brito - Retalhos. Esta canção inspirada no livro de Fernando Namora com o mesmo título, Retalhos da Vida de um Médico, foi popularizada por outro grande fadista, Carlos do Carmo.
É trocar um grande fadista por um enorme fadista. Prefiro de longe o original. 
Há sempre músicas que não deveriam ser mexidas.

Bom fim de semana 😉











quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Achtung Baby - 30 anos


18 de Outubro de 1991. Dois anos após a queda do Muro de Berlim.
A Europa estava inquieta com as profundas mudanças que estavam ainda acontecer no seu âmago, na Alemanha.
Os U2 em 1987 tinham lançado Joshua Tree, na linha dos anteriores álbuns, que levou a banda irlandesa para a estratosfera em termos de reconhecimento. 
O álbum seguinte, Rattle and Hum foi mal recebido pela crítica, não tanto pelo público, mas mesmo assim os U2 tremeram. Sentiram que corriam o sério risco de estagnar o seu som num momento em que a música e o mundo estavam a passar por uma revolução, sentiam que precisavam de fazer algo diferente.

A solução passou pela reinvenção do som da banda e assim surge, em associação com o produtor Brian Eno, Achtung Baby (achtung, atenção em alemão).
Um som menos pop, mais disco, mais industrial, por vezes psicadélico. As suas letras tornam-se mais de intervenção, mais pertinentes e assertivas.
Temas como One, Misterious Ways, Who's Gonna Ride your Wild Horses tornaram-se hinos universais dos U2. Hoje faz trinta anos que este álbum foi editado.

Não sou particularmente fã de U2 mas há que reconhecer a importância pivotal de Achtung Baby na discografia da banda e no panorama da música em geral. Trinta anos depois a sua importância não está diminuída, pelo contrário, ainda soa a novo.

Nestas três décadas do sétimo álbum dos U2, fujo aos seus clássicos e prefiro The Fly. Talvez o mais "estranho" dele, onde o psicadelismo, as distorções, riffs e o experimentalismo de Achtung Baby estão mais presentes.
Parabéns U2.






It's no secret that the stars are falling from the sky
It's no secret that our world is in darkness tonight.
They say the sun is sometimes eclipsed by the moon
Y' know I don't see you when she walks in the room

It's no secret that a friend is someone who lets you help.
It's no secret that a liar won't believe anyone else.
They say a secret is something you tell one other person
So I'm telling you, child

Love, we shine like a burning star
We're falling from the sky

A man will beg
A man will crawl
On the sheer face of love
Like a fly on a wall
It's no secret at all

It's no secret that a conscience can sometimes be a pest
It's no secret ambition bites the nails of success
Every artist is a cannibal, every poet is a thief
All kill their inspiration and sing about the grief

Love, we shine like a burning star
We're falling from the sky

A man will rise
A man will fall
From the sheer face of love
Like a fly from a wall
It's no secret at all

Love, we shine like a burning star
We're falling from the sky tonight
Love, we shine like a burning star
We're falling from the sky

A man will rise
A man will fall
From the sheer face of love
Like a fly from a wall
It's no secret at all

It's no secret that the stars are falling from the sky
The universe exploding 'cos-a one man's lie
Look I gotta go, yeah, I'm running outta change
There's a lot of things if I could I'd rearrange






quarta-feira, 17 de novembro de 2021

terceira sinfonia de Henryk Górecki - ou como a tristeza pode ser tão, mas tão bela


No que se trata de música, acontece-me frequentemente fazer grandes descobertas.

Quando refiro "grandes descobertas" pretendo dizer algo que me marca profundamente, algo que  me impacta, que ficará sempre na minha memória, que fará parte de mim. No que se trata de música, acontece-me frequentemente fazer essas tais grandes descobertas.
Quase sempre elas acontecem naquela que foi a minha primeira paixão, o meu primeiro amor musical, e diz-se que não há amor como o primeiro, a música clássica.
Tchaikovsky, Beethoven, Mahler, Chopin, Pärt, são algumas, entre outras, dessas descobertas que degeneraram sempre em paixão por estes nomes. São nomes cujas obras recorro frequentemente em diversas ocasiões, quer sejam nas melhores ou nas piores delas. Usualmente nas piores. Ou seja, tendo a ouvi-las não raras vezes.

Há uns dias, fiz uma dessas descobertas: ouvi pela primeira vez a 3ª sinfonia do polaco Henryk Górecki. Atingiu-me em cheio. Fiquei siderado pela sua beleza, pela sua tristeza, pela sua austeridade. Pelo tom quente e espiritual desta sinfonia. Pura poesia. O nome pela qual é conhecida atira precisamente para esses estados de alma- Sinfonia das Canções Tristes, também conhecida pela Sinfonia das Lamentações. São três canções que evocam a maternidade e a perda de um filho.

Ao contrário do que é usual numa sinfonia, quatro movimentos, a terceira de Górecki tem três. Cada um deles representa uma canção, um episódio dessa perda, dessa despedida maternal.
O primeiro movimento representa Nossa Senhora, a mãe, aos pés da cruz chorando a morte do seu filho, Jesus Cristo. O segundo movimento baseia-se numa inscrição de uma filha, Helena Wanda Błażusiakowna de dezoito anos, para a sua mãe, encontrada numa parede de uma prisão Gestapo em Zakopane - "No, Mother. Do not weep. Most chaste Queen of Heaven, support me always. Ave Maria." O terceiro e último movimento é baseado numa canção do folclore polaco, onde também uma mãe chora a perda, enquanto procura o seu túmulo, de um filho morto durante a guerra da Silésia em 1919.

A sinfonia, tocada pela primeira vez em 1977, é de uma beleza inacreditável. 
Górecki em 1995, durante uma entrevista à rádio norte-americana NPR, leu ao vivo uma carta de uma menina sueca de 14 anos, vítima de queimaduras severas durante um incêndio em sua casa onde perdeu a mãe, a dizer-lhe que a sua sinfonia tinha sido o grande motivo para ela viver. Isto diz tudo acerca do poder desta obra prima da música clássica contemporânea.

A pungência do terceiro movimento, é especialmente densa e tangível. Um assombro.
O texto que canta no terceiro movimento é dolorosamente belo:


Where has he gone
My dearest son?
Perhaps during the uprising
The cruel enemy killed him
Ah, you bad people
In the name of God, the most Holy,
Tell me, why did you kill
My son?
Never again
Will I have his support
Even if I cry
My old eyes out
Were my bitter tears
to create another River Oder
They would not restore to life
My son
He lies in his grave
and I know not where
Though I keep asking people
Everywhere
Perhaps the poor child
Lies in a rough ditch
and instead he could have been
lying in his warm bed
Oh, sing for him
God's little song-birds
Since his mother
Cannot find him
And you, God's little flowers
May you blossom all around
So that my son
May sleep happily


Sobre o sucesso e o impacto que esta sinfonia teve no público, bem mais que nos críticos na altura da sua estreia, Henryk Gorecki afirmou:

"Talvez as pessoas encontrem algo que precisam nesta peça musical.
De alguma forma toquei na nota certa, algo que tenham sentido que estava em falta."

Ouçam esta sinfonia pelo menos uma única vez. Fiquem a saber que ela existe.
Dêem-lhe a oportunidade tocar a vossa alma, de ser a vossa grande descoberta 🙂
Façam-no através da gravação da etiqueta Nonesuch com a Sinfonietta de Londres, dirigida por David Zinman e com a voz da soprano Dawn Upshaw. Ou seja, exactamente a gravação que é apresentada aqui.
Por esta altura já ouvi outras gravações, com outras sopranos a cantarem estas três canções mas nenhuma tem a doçura, o tom quente e glorioso de Upshaw e a delicadeza da direcção de Zinman.










terça-feira, 16 de novembro de 2021

um poema (sobre gatos) de... Pablo Neruda






Ode ao gato


Os animais foram
inacabados,
longos de cauda, tristes
de cabeça.
pouco a pouco foram-se
formando,
tornando-se paisagem,
adquirindo sinais, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser somente gato
e todo o gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde pressentimento a ratazana viva,
desde a noite escura até aos seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa única
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.

Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu,
das telhas eróticas,
o vento do amor
na tempestade
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de tudo o que é terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
das habitações
insígnia
de um
veludo já desaparecido,
certamente não há
enigma nesse teu modo,
não és talvez mistério,
todo o mundo te conhece e tu pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se creiam donos,
proprietários, tios,
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não concordo.
Eu não conheço o gato.
Eu tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
as depressões vulcânicas do mundo,
a pele irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
têm seus olhos números de ouro.


Pablo Neruda
(Navegaciones y Regresos, 1959)







domingo, 14 de novembro de 2021

as desastrosas consequências dos 3 graus


A COP26 acabou. 
Foi redigido um documento final que obteve mais consenso que o acordo dos países participantes.
Foram atingidos compromissos importantes mas as energias fósseis, para infelicidade do planeta (e nossa), vão permanecer quase inatingíveis. Elas vão-se manter no "activo" nas próximas décadas. 
O combate à desflorestação também não foi plenamente atingida, e neste triste campo está o Brasil numa posição de destaque em que ano após ano destrói sistematicamente a floresta amazónica e que, não inocentemente, optou por estar ausente da cimeira do clima deste ano.

Um dos objectivos da cimeira do clima que acabou ontem era manter até ao final deste século, a subida da temperatura global do planeta relativamente à era pré-industrial em 1.5ºC. Foi esse o grande propósito dos acordos de Paris em 2015. No entanto, passados seis anos, se a actividade humana permanecer tal como está neste momento esse aumento de temperatura chegará aos 2.7ºC. Paris, está portanto a falhar os seus objectivos. 2.7 é demasiadamente próximo dos 3ºC. Agora, qual é a importância desta meta que ninguém quer que se atinja?

Se o nosso planeta até ao ano 2100 subisse três graus relativamente à sua média global dos tempos pré-industriais seria o que vídeo que a Economist documentou que a Humanidade enfrentaria.
Infelizmente alguns destes sinais já estão a acontecer. A secas extremas, inundações costeiras e o "afundar" dos países com cotas mais baixas relativamente ao nível do mar é uma realidade de há alguns anos. 

Fiji, Tuvalu, Kiribati, Bangladesh e as ilhas Salomão estão a sofrer em primeira mão os efeitos das alterações climáticas. Comunidades destes países estão já a deslocar campos de cultivo e aldeias para fugirem às zonas inundadas pelo mar. Isto é tão sério que já foi instituído a figura do refugiado climático.

Se há países em África já estão a sofrer ondas de calor de secas prolongadas, outros há, como os países do Corno de África em que as chuvas intensas estão causar o caos nas populações. Moçambique e Madagascar estão debaixo dos efeitos de tufões tropicais de categorias mais elevadas e logo mais destrutivos. 
Países como a Índia - ironicamente um dos países que pretende continuar a usar combustíveis fósseis, e que tem níveis de poluíção atmosférica altíssimos, tem como objectivo atingir a neutralidade carbónica apenas em 2070 - ou a Indonésia, entre outros países asiáticos, estão a sentir na pele o aumentar a intensidade das monções com efeitos devastadores sobre as populações. A Europa está a enfrentar com uma frequência cada vez maior os efeitos de prolongadas e severas ondas de calor e de frio. Os fenómenos meteorológicos extremos são cada vez frequentes e com consequências cada vez piores. 
Isto sem mencionar a perda, cada vez mais acelerada de biodiversidade e da incapacidade do planeta em sustentar a vida marinha e terrestre e logo a nossa própria.

Uma subida média de três graus da temperatura global do planeta até ao final do século é algo que não queremos que aconteça. Tudo o que já está acontecer neste momento irá potencialmente aumentar em área, em consequência, ferocidade e em rapidez. Estamos mais próximos do que nunca desse valor. São os tais 2.7ºC previstos no final deste século. Inacreditavelmente, e especialmente ao nível dos decisores políticos, todos sabem o que é preciso fazer para que se atinjam os desejados 1.5ºC. Egoisticamente os maiores poluidores do mundo, não estão fazer, ou estão a bloquear, o que imperativamente e urgentemente tem que ser feito.
No fim, ninguém, qualquer que seja a zona geográfica do planeta considerada, se sai bem ou fica bem numa situação destas. Ninguém!