A cor preta já desmaiada por quase três décadas em que ela foi escrita nas costas da capa, está a data de Feira do Livro 85. A edição é da Europa-América e o título do livro é A Ilíada de Homero.
Dentro dele costumava estar um conjunto de folhas tamanho A5 que constituía um pequeno mapa para me guiar ao longo da narrativa deste livro.
Quando li o livro pela primeira vez, pouco percebi dele, sabendo no entanto que o tinha adorado.
Lá dentro havia guerras, batalhas e duelos. Heróis e cobardes, actos de bravura e discursos inspiradores e inflamados dirigidos à coragem e aos feitos que serão lembrados pela história. Morte, violência, sangue derramado, glória, honra e desonra, sacrifício por companheiros de batalha e traições aos mesmos.
Tudo o que define a condição humana.
Havia deuses que apoiavam guerreiros dando-lhes ímpeto e força quando já nada lhes restava e outros deuses que por sua vez os distraiam com ardis e os faziam falhar os seus alvos.
Era deuses contra homens, homens contra deuses, homens contra homens e deuses que conspiravam contra outros deuses.
Assim é a Ilíada.
Um poema épico que descreve uma época e uma guerra meio histórica, meio lenda, que foi travada entre gregos e troianos e os diferentes povos que os apoiavam pondo em confronto os melhores e os piores homens que cada uma das partes tinha do seu lado.
Tudo porque um troiano, Páris, foi à Grécia para sequestrar e trazer consigo, Helena, a mulher do rei grego Menelau.
Este furioso, declara guerra a Tróia. Esta guerra durará dez longos anos e no fim os gregos saem vitoriosos e Tróia é destruída.
A narrativa é intensa. Somos mergulhados nela. Os combates são vívidos e intensos. Sente-se o pó no ar e nos corpos. O suor e os urros de quem só quer provocar a morte e a destruição do lado oposto.
É palpável a vontade e a determinação da batalhas. Sente-se a sua tensão. Ouve-se o ressoar do metal contra metal, das espadas contra os escudos. As feridas, os gritos que a dor provoca. O troar das patas dos cavalos que são dirigidos para o calor da refrega.
Quem assiste às batalhas tanto ulula de entusiasmo, incentivo com as vitórias como se queda muda, chocada, confrontada com a morte. Com a morte de um combatente ou de um familiar, filho de alguém.
É isto que caracteriza a Ilíada. Homero lança-nos para dentro do livro. Não só para as batalhas, como para os ambientes que as rodeia. Antes, durante e depois.
Para os descansos, para as conversas e definições de estratégias, para os barcos ancorados nas praias. Conta quais os papeis que as mulheres desempenharam quer na cidade de Tróia quer nos acampamentos gregos.
A Ilíada descreve quase até à exaustão as linhagens de cada um das muitas personagens que participam nesta guerra e de como elas influenciavam os seus comportamentos, assim como os deuses que influenciavam e conspiravam entre si sobre os desfechos de algumas das batalhas travadas.
Mostra-nos as tradições, a cultura, os costumes, as vestes, armas, armaduras e os seus rituais de quem combatia, quer estes fossem de vida ou de morte. Como choravam os mortos e os honravam, a maneira como partilhavam os espólios da guerra.
É um livro que venero e me marcou profundamente. Primeiro pela necessidade que tive em o perceber.
Por isso da segunda vez que li o livro, pouco tempo depois da primeira, fiz um pequeno mapa, tipo árvore genealógica. De um lado os troianos e os deuses que os favoreciam, do outro os gregos e os respectivos deuses que os protegiam.
Tracei as linhagens das principais personagens e os diferentes povos a que pertenciam, entre parêntesis coloquei qual o deus ou deuses que tinham a seu lado.
Esperei algum tempo para voltar a ler com a minha cábula. Da terceira vez que li fiquei deslumbrado com o livro que tinha nas minhas mãos.
Graças ele, passaram a interessar-me todas as grandes mitologias. A hindu, a egípcia, a nórdica e principalmente a greco-romana. Interesse e fascínio que ainda hoje sinto.
É raro o livro que passe pelos meus olhes e que aborde uma mitologia qualquer que não seja pelo menos folheado.
O seu "escritor", Homero, é ele próprio uma personagem lendária.
Ninguém sabe se ele existiu ou não, se sim em que cidade terá nascido e quando terá nascido. E se Homero será o seu nome verdadeiro.
Se foi ele que escreveu ou não a Ilíada e posteriormente a Odisseia. Há quem diga foram autores diferentes e que as duas obras estão separadas entre si várias décadas ou até séculos.
Há quem defenda que estas obras não foram escritas de raiz, mas sim a partir de histórias compiladas ao longo de séculos por contadores de histórias.
Homero através da Ilíada e da Odisseia é também considerado um dos pais da mitologia grega.
Toda esta névoa misteriosa que rodeia Homero, só torna a Ilíada mais misteriosa, mais "genuína" e mais fascinante para mim.
A Ilíada é um livro aos quadradinhos mas sem quadradinhos que faz mergulhar quem o lê, num mundo de culturas e hábitos distantes.
E para quem viu o filme Tróia de Wolfang Petersen, engane-se se pensa que viu algo parecido com a Ilíada. Comparado com o livro, o filme é um autêntico embuste, uma fraude.
Bem, o facto é que quase três décadas depois de o ter lido (e relido) ainda ando metido lá dentro dele. E não tenciono sair de lá.