Não sou muito fã do Dia de Portugal. Não sinto um particular afecto ou orgulho de ser português. Vale pelo seu feriado.
Quando viajo percebo que Portugal é um país calmo, lanzeirão e laparduço. Bom para viver.
Aceita sem protestar o que lhe fazem. Não tem que ser nem má, nem boa esta característica. Somos assim.
É quando ando por terras africanas, asiáticas ou americanas que por vezes percebo a excelência do país ao qual pertenço.
Mas é no regresso que essa percepção desaparece. Estou a comparar alhos com bugalhos.
A minha realidade, a realidade portuguesa, não tem que ser medida por outros continentes que culturalmente são estranhos, não comparáveis, mas sim com a realidade a que pertence ou pelo menos a que gostava de pertencer.
Nesse regresso quando faço o tal exercício mental de valorização do meu Portugal com o país que me acolheu durante algumas semanas, penso sempre que é com a Europa que ele tem que ser comparado. E aí ele perde. Não em toda a linha, mas em quase toda a linha.
Penso em termos de corrupção, transparência, confiança, solidariedade. Nos índices de pobreza, desemprego, escolarização, poder de compra, evolução tecnológica, acessibilidade à cultura, apoios sociais.
A qualidade de quem nos governa e a bolha opaca em que os nosso políticos e ex-políticos se fazem proteger é um entrave sério à sua transparência. A política é corporativista, a justiça parece corrompida.
E será sempre o povo a pagar os erros, a ganância, a incompetência, a deslealdade de quem nos governa ou desgovernou.
Os sindicatos são anacrónicos, as greves vulgarizaram-se, as manifestações tornaram-se fogachos voláteis, por grandes que elas sejam e os ideais lá morrem na praia.
Também é o dia das comunidades portuguesas. São cada vez mais o que se piram desta país para fora.
É-lhes negado a estabilidade, as oportunidades. O emprego é cada vez mais precário, os salários cada vez mais baixas mesmo para mão de obra qualificada.
É dificultada a compra ou o arrendamento de casas no seu país natal.
Os incentivos, o apoio à natalidade são praticamente nulos. É mais uma vez lá fora que encontram o que deixou de existir cá dentro.
Não sinto na pele o que é ser, o que é pertencer a uma comunidade portuguesa lá fora. Mas deve ser mau. A burocracia deve ser imensa, os apoios efectivos cada vez menores. Cada vez que viajo para fora da Europa sei que devo contar mais com países europeus, do que o meu.
Procuro saber qual a embaixada europeia que está presente nesses países mais do que a nacional.
Essa certamente não está presente.
O que este dia também representa é o dia de Camões. Este sim dá motivos de orgulho. Ao contrário das efémeras personalidades que proferem grandes e vazios discursos, que defendem o passado, os inevitáveis Descobrimentos, e pateticamente apontam caminhos para o futuro, Camões tem lugar no passado e terá no futuro. E a sua obra será imaculada.
E no entanto é completamente esquecido. Deste dia apenas consta o seu nome. Ninguém fala dele, ninguém declama a sua poesia, ninguém relata, muito envolta em nevoeiro, a sua vida.
Nenhum político relembra, fala do seu nome ou da sua obra.
No fundo este dia resume-se a manifestações bacocas de um poderio militar que não existe e que até está obsoleto.
Um favor condescendente que os senhores de Lisboa fazem, com a pretensão da descentralização, a uma cidade esquecida nos trezentos e sessenta e quatro dias dos ano.
Discursos políticos para políticos. Desinteressante e inúteis.
Não sou um admirador confesso de Camões, mas respeito tremendamente a sua obra e também perante ela faço a minha vénia.
Por isso neste boçal do dia Portugal, que inúmeras vezes será mencionado em vão, invoco Camões, o melhor e o mais ignorado deste esfarrapado dia, através dos seus sonetos:
Ditoso seja aquele que somente
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amoras esquivanças,
Pois por elas não perde as esperanças
De poder n’algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que a pena das Lembranças,
Porque inda que se tema de mudança,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar n’alma a mágoa de secado.
Lembranças, que lembrais meu bem passado
Lembranças, que lembrais meu bem passado
para que sinta mais o mal presente:
deixai-me, se quereis, viver contente,
não me deixeis morrer em tal estado.
Mas se também de tudo está ordenado
viver, como se vê, tão descontente,
venha, se vier, o bem por acidente,
e dê a morte fim a meu cuidado.
Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória,
pois tanto dano faz o pensamento.
Assi que nada perde quem perdida
a esperança traz de sua glória,
se esta vida há-de ser sempre em tormento.
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Algua cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.