Aquelas paredes, os edifícios, os passeios, devem cheirar a morte.
Pior. Deve-se sentir a Ceifeira a espreitar. À espera de alguém que não tenha sido tocada por ela.
Ainda viciada e sedenta depois de ter sorvido mais de um milhão de almas durante a existência do complexo dos campos de concentração de Auschwitz.
No seu peito estava tatuada a negra suástica.
A Ceifeira abraçava enganadoramente o destino de quem cruzava aqueles portões de Auschwitz - O Trabalho Liberta. A ímpia face negra tocava com falsa ternura os lívidos e assustados rostos através daquele sinistro letreiro.
A suástica, mais vil que Judas, estava permanentemente ávida dos comboios de carruagens carregadas de seres humanos. Todos de apelidos judeus e estrelas amarelas pregadas na roupa, que seres inumanos diariamente lhe forneciam.
Seis a dez mil pessoas todos os dias alimentavam a besta hedionda. Uma fonte, uma torrente de interrupção de tudo e todos.
O número de mortos por dia ficava sempre muito próximo das que chegavam. Um balanço de deve e haver macabramente equilibrado.
Para muitos, os comboios, as carruagens, tornaram-se nos seus caixões. À chegada dos campos de concentração, muitos já tinham cedido as suas vidas à Ceifeira.
Nas carruagens, as pessoas eram empilhadas uns sobre outros. Fardos de palha humanos atirados displicentemente para o seu interior.
Sufocados, sem luz, ar fresco ou hidratação, o calor e a imobilização roubava a muitos o seu último fôlego.
À saída, uma revista, uma inspecção. Duas filas. A ignóbil análise e de omnipotente escolha de Josef Mengele. Um gesto nefasto da mão para um dos lados e concedia a vida ou a morte.
Para a direita, a Ceifeira que respirava Zyklon B, para a esquerda os campos de trabalho. Um rápido prólogo para a morte, para uma efémera vida que matava. A média desta falsa sobrevivência tinha um número. Três meses.
Muitas foram as companhias alemãs que se instalaram nestes campos para usufruírem desta frágil e descartável, mas renovável, mão de obra.
Mulheres para um lado, homens para outro. Quem podia trabalhar para um lado, os mais fracos para o outro.
Muitas crianças foram no conforto dos braços das mães que as protegiam do impossível para as câmaras de gás. Talvez essas fossem as mais afortunadas.
As outras tornaram-se ratos de laboratório, atrozes experiências médicas de Mengel, o médico carrasco das SS.
Em Auschwitz as crianças não estavam autorizadas a crescer.
Faz hoje setenta anos que Auschwitz foi libertada pelos soldados russos. Oito mil sobreviventes.
Entre 1940 e 1945, cerca de um milhão e trezentas mil pessoas morreram às mãos infames dos Nazis.
A Alemanha nas décadas seguintes calou e ignorou esta loucura de morte dentro de si própria.
Foi apenas na década de sessenta que pela primeira vez a Alemanha foi confrontada dentro e fora das suas fronteiras com barbárie que habitava nestes campos .
Em 1985 o horror dos campos de concentração e particularmente Auschwitz, uma palavra sinónima de trituradora e incineradora de vidas voltou a surpreender e a chocar os alemães.
Auschwitz e Birkenau estão longe de serem os únicos campos de concentração, as únicas fábricas de montagem em série de morte.
Havia muitos, muitos outros. Dachau, Treblinka, Bergen-Belsen, Buchenwald, Jasenovac. Uns eram campos de extermínio, trabalhos forçados ou ambos.
E nem todos estavam na Alemanha. Polónia, Itália, Estónia, Croácia e até França também tinham os seus campos de concentração onde a vida era amaldiçoada.
Os tentáculos nazis eram longos,fétidos e tingidos de vermelho. O toque de Midas da Ceifeira.
O nazismo, a sua filosofia e Auschwitz, são uma das maiores nódoas jamais geradas pelo ser humano
E que nunca mais caia outra no pano da Humanidade. Porque não há expiação possível para ela.