Tenho uma profunda admiração e carinho por palhaços. Evito ao máximo não chamar palhaço a alguém para os não ofender.
Quando os vejo tento perceber se riem chorando ou riem rindo.
Torço sempre, sempre, para que não tenham que esconder as lágrimas por trás de um sorriso.
A maior parte de nós pode dar-se ao luxo, mesmo disfarçadamente, entre linhas, como uma válvula de escape que deixa escapar o vapor delicadamente sem ruído. Virar a cabeça para o lado ou para baixo, discretamente sair e deixar correr as lágrimas salgadas num canto meio
Não para um palhaço.
Um palhaço tem que ir para um teatro de guerra. Um palhaço tem que olhar de frente e enfrentar uma plateia que está ali para se divertir, para rir. O trabalho mais difícil do mundo. Fazer rir.
O público não pode sentir que o palhaço está triste. Egoisticamente não o permite.
A sua peruca não pode cair, o nariz não pode descair, a pintura tem de permanecer imaculada.
Ele acarinha a multidão, mas a multidão não retribui. Aplaude, mas nesses aplausos impessoais e escanzelados não há a percepção do seu sofrimento. Do nevoeiro não condensado nos espelhos da sua alma.
Ele chora e grita. O seu ser pode vibrar com um trovão que cai perto de nós, mas para os outros, o que tem que sair é música. Para um palhaço nem tudo está bem quando tudo acaba bem. Não tem esse privilégio.
Como a morte, ser palhaço é uma profissão solitária. Ser palhaço é um acto de auto-sacrifício desprezado.
Esta semana não estou com vontade de procurar uma música portuguesa. Em vez disso vou buscar um tema que ilustra este carinho especial que tenho pelo solitário palhaço.
Palhaço é o último tema do álbum Mágico de 1980. Um trio extraordinário liderado pelo contrabaixista americano Charlie Haden. ladeado por outros dois senhores do jazz. O norueguês Jan Garbarek nos saxofones tenor e soprano e o brasileiro Egberto Gismonti no piano e guitarra.
Em Palhaço sente-se as lágrimas de um palhaço guardadas numa arca de tesouro sem um X marcado.
A música é lenta e bela.
Escrita a pensar quando o Palhaço se senta no seu camarim.
Os aplausos já la vão. Silenciados e esvaziados. Ele cumpriu bem a sua missão. Ninguém notou a dor que o assolava. Está cansado e dorido. Descansa agora com as mãos na cabeça e de olhos fechados e exausto pelos dois esforços a que esteve sujeito.
As lágrimas correm-lhe pela pintura que ainda perdura no seu rosto trançando-a para todo o sempre.
Dirão que há outras profissões que também são assim. Sim há.
Mas um palhaço tem que se pintar, tem que se vestir, usar roupas e sapatos que muito provavelmente serão desconfortáveis. E mais. Tem que fazer rir.
Bom fim de semana :)