sexta-feira, 15 de setembro de 2023

um poema de... Natália Correia


Há dois dias, neste post, a propósito do centenário do nascimento de Natália Correia, fazia menção ao poema Defesa do Poeta que Natália tinha escrito por altura do seu julgamento a propósito da antologia  que tinha organizado de poesia portuguesa erótica e satírica.

Aqui fica ele:


A Defesa do Poeta

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.



"Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença."

In “A Mosca Iluminada”






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