terça-feira, 3 de maio de 2016

Paulo Varela Gomes - Morre como um touro


Paulo Varela Gomes, era um historiador e escritor de arte e arquitectura, morreu no sábado passado, após quatro anos lhe terem diagnosticado cancro.

Para além de tudo o que deixou escrito, vários livros, ensaios, críticas e colaborações com jornais, participação activa na vida política nacional e dois documentários feitos para a RTP,  Paulo Varela Gomes deixou também um longo e doloroso relato escrito na primeira pessoa, sobre a forma como reflectiria, viveria e enfrentaria a sua própria morte.
Foi escrito para a revista Granta com o título "Morrer é mais difícil do que parece"

Para além destas facetas literárias e técnicas, o historiador tinha também uma vertente humanista e muito acutilante no que respeita ao sofrimento animal.
Para este post é este seu lado que prefiro trazer ao de cima, porque os outros são já sobejamente conhecidos por todos.

Em 2010, Paulo Varela Gomes escreveu um texto para o Público intitulado - Morrer como um touro.
Um texto sentido e emotivo sobre as angustias e os sofrimentos do touro durante uma lide na arena e a aparente e pretensa valentia de um toureiro ou forcado, que apenas mascara uma profunda covardia.

Fica o link para o texto completo e reproduzo parte desse mesmo texto:

"Mas a tradição é mais antiga, do tempo em que humanos e animais lutavam na arena para excitar os nervos da multidão com o sangue e a morte anunciada. A piedade, que é um valor mais antigo do que Cristo, veio, na sua interpretação cristã, salvar disto os humanos. Esqueceu-se, porém, dos animais.
Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu. Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. 
Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o momento em que os animais "cheiram" a morte iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. 
A multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou.

Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente). Pose de hombre, pose de macho. Mas os riscos que de facto correm são infinitamente menores que a sorte que inevitavelmente espera os touros, que o sofrimento e a desorientação que infligem aos touros para o seu próprio prazer e o da multidão. 
Dá vontade de dizer que quem se porta assim, quem mostra orgulho de se portar assim, tem entre as pernas, e não apenas literalmente, órgãos bem mais pequenos que aqueles que os touros exibem. Os toureiros são corajosos mas entram na arena sabendo que haverá sempre quem os safe, senão à primeira colhida, então à segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de todos os animais por igual. Os touros, esses, não têm ninguém que os vá safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte. 
Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão, fiquem no chão. Morram na arena. É cultura. A senhora ministra da Cultura certamente compensará tão antigo costume.

Também era da tradição, em Portugal por exemplo, executar em público os condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas. Foi assim durante milénios. Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.


Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?"


1 comentário:

  1. Um grande Homem que partiu...:(
    Li o relato "Morrer é mais difícil do que parece". Tocou-me fundo.
    Quanto a este texto sobre as touradas, subscrevo na íntegra.

    "Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente). Pose de hombre, pose de macho." Penso que agora também já há toureiras...
    Um aspecto em que a emancipação feminina me deixa triste. Muito :(

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