Há poucos anos atrás, dizia em tom de brincadeira, mas a sério, que o maior dos poetas nacionais é Fernando Pessoa, a seguir há um extenso deserto e que depois dele surge Florbela Espanca.
Agora sem ser em tom de brincadeira continuo a afirmar que Pessoa é o maior entre os maiores e que Florbela Espanca surge depois, mas que o extenso deserto foi substituído por uma pequena orla de areia.
Quase como se ela se pudesse esticar toda e tocar ao de leve na mão de Pessoa.
São dois poetas diferentes, mas também muito iguais.
Em ambos se sente o peso e a força do destino, em ambos existe uma mente torturada e almas rasgadas, em ambos há uma consciência dolorosa da existência e em ambos existe algo que buscam e que não encontram.
Quem lê e gosta de Pessoa fica com a sensação que ele escreveu para cada um de nós, que há uma generalizada identificação muito pessoal com a sua poesia.
A poesia de Pessoa é tortuosa, complexa, esquizofrénica nos heterónimos, por vezes contraditória.
Mas Florbela Espanca já não. Ela escreveu para que nós percebêssemos o que sentia, mas não conseguimos perceber como se sentia.
Não escreveu para nós, mas sim acima de tudo para ela própria. Numa tentativa aliviar, talvez esconjurar o peso da sua existência, da fatalidade, do destino e da inevitabilidade do fim.
A sua poesia é inquieta, sombria e até violenta. Gosto de a descrever como visceral.
Se Fernando Pessoa se auto-desconstruiu em heterónimos para "escapar" à queda no abismo interior ou pelo menos para tornar o seu caminho mais longo, Florbela Espanca caminhou directo para lá.
Fumadora compulsiva, com três casamentos, dois divórcios e vários amantes, sofrendo de uma neurose e depressão crónica, nunca recuperando da morte do seu irmão Apeles Espanca, Florbela Espanca era uma mulher de versos tristes e melancólicos.
Os seus poemas são anúncios e prenúncios do que estaria para vir, o desenlace final, a acalmia e consolo que ela procurou, encontrou e concretizou à terceira tentativa, o seu suicídio.
Florbela Espanca morre, a última e derradeira oferta para si própria, no dia em que nasceu, 36 anos depois, a 8 de Dezembro de 1930.
Deixai entrar a Morte
Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portar par em par
Com as asas a bater em revoada.
Quem sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar
E que, ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe, Ó minha Mãe, pra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
Pra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?...Pra que eu tivesse sido
Somente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
Florbela Espanca
Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do sonho, e desta sorte,
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca
Mais poemas aqui e aqui.
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