Esta pode ser uma interpretação do conceito normal de um cemitério. Pelo menos do ponto de vista de um ocidental.
Um local sagrado onde os vivos prestam homenagem aos mortos, uma linha distinta feita de silêncio, triste e difícil de cruzar, entre vida e a celebração da morte.
No documentário Cidade dos Mortos de Sérgio Tréfaut mostra-nos que não é assim. Não no Cairo, capital do Egipto.
Um cemitério aqui é um local onde a morte favorece a vida e suporta o seu quotidiano.
Há mexericos, comércio e mercados. Há escolas e padarias. Há casamentos, há brincadeiras de crianças e há cultura. Os rapazes como em todo o lado, seguem uma regra universal: cobiçar e andar atrás das raparigas.
Os carros passam e buzinam e as ovelhas e cabras circulam pelas ruas.
Um túmulo torna-se uma casa, torna-se uma mesa, um local de conversas e de brincadeiras. Eles podem ser alugados ou cedidos gratuitamente a famílias que se estabelecem no seu interior.
Por vezes quem lá habita tem que retirar os seus pertences para que os verdadeiros donos possam prestar homenagem aos outros habitantes do espaço: os seus mortos. A Morte reclama o que é seu por direito mesmo que temporariamente.
Na Cidade dos Mortos, os cemitérios do Cairo, a única linha distinta é entre o antigamente e o agora. Para os anciãos, o antigamente, há ainda um enorme respeito pela morte. Ela deve ou devia sobrepor-se à vida. O curso normal da Vida deveria parar ou ser suspensa para a Morte passar, para esta seguir os seus ritos. Para os mais modernos, o agora, já nem tanto. A Vida domina. Os risos não respeitam as lágrimas e os casamentos são indiferentes aos funerais.
É uma realidade surpreendente e estranha para nós, aquela que Tréfaut nos mostra e guia através dos cemitérios do Cairo, a Cidade dos Mortos.
É um documentário que nos remete para conceitos de morte e principalmente da utilização do seu espaço de uma maneira radicalmente diferente daquela que nós ocidentais estamos habituados.
Estas cidades erigidas entre túmulos e mausoléus, albergam quase um milhão de habitantes e ocupam cerca de um quarto do espaço da cidade do Cairo.
texto previamente publicado na revista de artes online Textualino.
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