domingo, 22 de dezembro de 2019

um poema de... Sophia Mello Breyner (na chegada do Inverno)


I

Poesia de Inverno: poesia do tempo sem deuses
Escolha
Cuidadosa entre restos

Poesia das palavras envergonhadas
Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas
Quem ousaria dizer:
Seda nácar rosa

Árvore abstracta e desfolhada
No inverno da nossa descrença


II

Pinças assépticas
Colocam a palavra-coisa
Na ilha do papel
Na prateleira das bibliotecas


III

Quem ousaria dizer:
Seda nácar rosa

Porque ninguém teceu com suas mãos a seda - em longos dias em
compridos e com finos sedosos dedos

E ninguém colheu na margem da manhã a rosa - leve e pesada faca
de doçura
Pois o rio já não é sagrado e por isso nem sequer é rio

E o universo não brota das mãos dum deus do gesto e do sopro dum
deus da alegria e da veemência dum deus

E o homem pensando à margem do destino procura arranjar licença
de residência na caserna provisória dos sobreviventes


IV

Meu coração busca as palavras do estio
Busca o estio prometido das palavras



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