terça-feira, 20 de janeiro de 2015

ele





ele

Ele. Não está derrotado.
Tão exausto que se sente. 
Não pode estar derrotado. Lutou. Contra tudo. Contra todos.
Contra ele. Chegou à exaustão. Ausência. Da vitalidade.
Não está derrotado. Não sabe. Mas sente-o. Não é justo. 
A vida não é justa. Justa. Justa.

Para ele o dia de hoje acabou. 
Nem pensa no dia de amanhã. Pensa que é uma eternidade. Negra.
Amanhã poderá ser um fim de semana. Poderá descansar o corpo. 
Mas não a mente. Ele terá sonhos.
Os sonhos não permitem descansar. 
Porque são estranhos. Surreais. Violentos. 
Será atormentado. Atiram-no para lugares que não são.
Pior que pesadelos. Os pesadelos reconhecem-se e passam.
A cabeça não pára. Pára. Pára.

Só no mundo. Brutalmente só. Mesmo que não esteja.
É o único homem no mundo. De cansaço. Áspero.
Porque o mundo não olha para ele. Este homem não olha para ele. 
A sua visão é turva. O corpo não existe. Só o peso. 
Não vê o exterior, não vê o interior.
Existe só. Só. Só.

Se não for fim de semana, vai lutar. 
Amanhã. Ele sabe que vai lutar de novo. Tem que. É só o que sabe. 
Está exausto. Drenado. Mas não derrotado. Apesar de o sentir.
Amanhã mais uma vez. De novo. Quer cair, mas não vai cair.
Talvez devesse. Ceder. Cair.
Sentir o chão frio. Frio. Frio.

Abandonar a sua ausência. Despertar essência.
Insiste em não cair. Não quer. Por isso não descansa. Por isso desespera.
Se caísse estaria derrotado. Era bom. Era assumido. Queria. Fechava o ciclo.
Um introspectivo zero. Um alívio. Momentâneo.
No não ser que lhe foi tirado. Tirado. Tirado.

Terceiros dirão:
“Teve um dia duro, coitado”
“Olha para ele, nem se mexe dali”
“Que sova que levou”
“Deve ter sido despedido”
"A mulher deixou-o"

É verdade. Tudo é verdade. Mas é pouco. Muito pouco. Isso ele aguentaria. 
Pior que isso. Carrega o peso do mundo.
Mais o seu. O maior deles. O mais pesado deles.
Há sombras negras. Silenciosas. Esvoaçam dentro dele. 
Criadas por ele que não existe. Nem elas existem.
Mas estão lá. Sente os bafos.
Assombrado movimento perpétuo. Ninguém o percebe.
Só alguém que fosse ele. Ele. Ele.

Mas não são. Ele é um estranho. Atípico.
E por isso olham para ele e passam ao lado. 
Um derrotado. Que não é. Porque não cede.
Mas um café ou um chá, ele aceitaria. E uma cadeira. 
Para cair de maneira que não caísse. Porque ele não cede.
Olhos vazios. Não o veriam. Quem fosse. Um sorriso. 
Sincero. Genuíno. Em silêncio.
Melhor que chá. Melhor que café. Melhor que cadeira.
Isso sim. Sim. Sim.

Um dia cederá. Não que o queira. Forçado. 
Cansado. Muito cansado. 
Porque insistiram nisso. Nisso. Nisso.

Um dia partirá. Sombras negras vencerão. Os outros. Ele.
Feitas por ele que não é ele. Agora é. É ser. Viajante no nada.
Não há luta. Descanso. Por fim.
Alma sem corpo. Eu sem ego. Só.
No éter. Éter. Éter.


Inkheart


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