quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

sobre a Morte





Culturalmente temos tendência a suspende-la, a ignorar, a ausenta-la daquilo que a mais caracteriza, daquilo que a torna natural, a vida.

Vemos a vida como uma moeda de uma só face. Sabemos intrinsecamente que é uma inevitabilidade mas "esquecemos-mos" dela, do equilíbrio que ela representa, da renovação que permite, a outra face dessa moeda, a Morte.
Afastamo-nos e afastamos os nossos putos dela. Não os deixamos ir aos funerais e contamos histórias que tal senhor ou tal senhora foi dormir para céu. Como se os quiséssemos proteger de algo que provavelmente e culturalmente não deveriam/ deveríamos ser protegidos. Mas sim plenamente e naturalmente, porque é disso que se trata, introduzidos nesse conceito.

Sou um ocidental, portanto partilho e sinto em mim esse peso, esse medo cultural da morte.
Pessoalmente o que mais me assusta na morte não é a morte em si, mas não a perceber, não compreender o que ela é. Algo que só perceberei quando a tiver à minha frente. Faz sentido.
Como ser vivo que sou, só percebo a vida. Não percebo, não consigo conceber o seu oposto.

Por vezes, à noite quando o meu pensamento vagueia à solta pelos cantos do meu quarto escuro, eu oscilo indeciso de um lado para o outro, como uma bola de ping pong atirada de um lado para outro da rede.
Tanto quase fico com um pavor dela, desse desconhecido inevitável, como por vezes fico fascinado, quase impaciente por a sentir, por a perceber.

Tenho inveja de outras culturas que como a oriental, em que a morte é algo que coexiste com a vida. Uma tão natural como a outra. A morte é encarada como um passo em frente. Uma evolução, uma reaprendizagem, uma oportunidade de redenção não punitiva. Como na escola. Só se passa de ano, depois de se ter aprendido o anterior.
Algo (entre muitas outras) que me desagrada na religião cristã. Os bons vão para céu, os maus para o inferno e os assim-assim para essa coisa cinzenta indistinta que é o purgatório. Uns tantos anos aqui, para depois passares a eternidade acolá.
É um conceito simplório, redutor. Pouco imaginativo. Não se aprendem lições.

Talvez a morte talvez não tenha que ser má. Certamente que não, tento eu acreditar como um ocidental que inutilmente foi ensinado a virar a cara, a passar ao lado dela.
Há quem procure nela um refúgio para os fardos da vida.
Um aparte. Ao contrário do que genericamente se pensa, não considero um suicida como um covarde. Pelo contrário, penso que é preciso muita coragem para dar o salto para aquilo que se desconhece, dar o salto para o outro lado. O lado "escuro" e ostracizado da moeda que na outra face ostenta a vida.

A morte pode ser seja algo bom. Pela lógica deverá ser aquilo que as nossas crenças permitem ou acreditam que seja. 
A crença por definição resulta da fé. Na fé supostamente encontramos a esperança. A fé é positiva, é desejável. Não há portanto motivos para termos medo dela. Ninguém com fé pode crer que a morte é algo negativo. Não faria sentido ter fé se não fosse assim.
Outro aparte. Não sou uma pessoa de grande fé. Sou daqueles que quando chegar a minha vez logo se vê. Isto se houver algo para ver.

Quase todas as religiões, particularmente a budista, por a qual tenho uma grande simpatia e empatia, a vêm como o fim de trajecto, um caminho percorrido. Como a passagem de uma lagarta não particularmente bonita para uma delicada e bela borboleta. Uma metamorfose. Isto se o merecermos do ponto de vista budista.
Mas sempre como um processo mais ou menos lento de transformação, de evolução. Precisamos de ser várias vezes lagartas, mas cada vez mais perfeitas, para chegarmos ao nosso destino final: a borboleta que voa. O Nirvana.
"Morrer não é acabar, é a suprema manhã" escreveu uma vez Victor Hugo.

Para além de necessária, talvez a morte seja positiva. Talvez seja doce. Talvez seja terna. Principalmente se bem acompanhada.
Não gostava que ela fosse repentina. Gostava de sentir a sua chegada sem pressa. Que fosse suave. De a ver nos olhos e sorrirmos um para o outro. Dois desconhecidos que finalmente se vão conhecer.

Tropecei neste poema de Vasco Graça Moura por acaso. Gostei de imediato da sua doçura, de não rejeitar a morte, mas apenas a ideia de morrer sozinho, ou de não ter um amor. Esses sim, parecem ser os seus verdadeiros medos. E deve ter razão.
Revi-me nele. Depois de o ler várias vezes, também talvez gostasse de ter uma mão a segurar a minha. Nunca tinha pensado nisto.
Talvez seja mais fácil, mais tranquilo, enfrentar o supremo desconhecido desta maneira.
E à falta de uma mão, preferivelmente a complementá-la, seria bom ter uma pata. Gostaria muito de ter um animal ao meu lado. Quer seja um velho companheiro de vida, ou um recém chegado a ela. Ir-me-ia trazer conforto tê-lo comigo.

Imagino a Morte como uma senhora elegante usando um longo manto de um profundo negro de veludo, de rosto pálido e misterioso, mas sereno, delicado e de sorriso compreensivo. Alguém que reclinando-se sobre nós estende a mão, fazendo a transição das mãos que ficam com a que parte, ou que na ausência das terrenas nos cede gentilmente a sua mão para ajudar a fazer a tal passagem de lagarta para borboleta. 



Soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.


Vasco Graça Moura


2 comentários:

  1. Pedro, gosto imenso deste seu texto, parabéns pela forma como transmite aquilo que pensa e sente.
    Em especial esta sua frase marcou-me:

    "A morte pode ser seja algo bom. Pela lógica deverá ser aquilo que as nossas crenças permitem ou acreditam que seja. "

    :)

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  2. Como te disse, vou andar a "coscuvilhar" pelos teus poisos. Vim parar aqui. Belo texto e belo poema!
    Obrigada pelos dois:)

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