terça-feira, 7 de julho de 2015

a irmã da Morte


A Morte andava chateada da vida.
A Vida estava atrasar-se nos seus pagamentos e isso estava a reflectir-se no estilo de vida da Morte.

Estava com dificuldades em pagar o apartamento, os seus vastos terrenos usualmente atraentemente negros e obscuros, estavam agora aqui e ali, manchados como um bolor que cresce ao longo de um tecto, com traços de verde, alguma luz e o que mais a horrorizava era um ribeiro começava a traçar aqueles sepulcrais espaços que outrora tanto a orgulhavam.

A saúde da Morte estava débil. Estava magra e estava a enfrentar uma séria depressão.
Ouvia, mais do que o normal, requiems, missas e marchas fúnebres.
Mal saía de casa, não falava com as outras Mortes, estava permanentemente deitada no sofá, com o seu cão, o Moribundo, deitado ao seu lado. Tinha a certeza absoluta que era uma das piores Mortes que já mais tinham existido ao longo dos milénios.

A sua tez estava mais pálida do que costume, a sua temperatura ainda mais baixa que o normal e a postura empertigada como um ponto de exclamação era substituída por um ponto de interrogação.
Andava com os pés a arrastar pelo chão marcando-o com as sua unhas compridas e aguçadas. As suas vestes negras muito surradas, sem o preto fulgurante dos tempos anteriores.

A sua casa estava cheia de almas espectrais tão amarrotadas e encarquilhadas que já nada saía delas, nem o mais ténue sopro. A morte tinha-as fumado até à exaustão.
Estavam todas espalhadas por todo o lado. Em cima do frigorífico, debaixo da mesa, das almofadas, ao lado dos sofás.

Repetia para si própria: o problema era a sua irmã gémea, essa traidora. Todas as moedas têm duas faces. A Morte não gostava particularmente da outra face. Praguejava ininterruptamente contra ela. A Vida.
Esta andava sempre atarefada. Vestia-se de uma maneira colorida. Tops, calções justos, mini-saia, cabelo apanhado num elegante rabo de cavalo ou deslumbrantemente solto. Tinha variadas e ruidosas pulseiras brilhantes e um piercing verde florescente no umbigo que fazia questão de exibir.

A Morte via a Vida, além de insuportável exibicionista, como uma caloteira. Alguém que dizia que pagava a trinta dias, quando na verdade fazia-o a noventa.
A colheita de almas andava atrasada, muito atrasada, rabujava a Morte.
A Vida no entanto mantinha o acordo escrupulosamente. O que ela gerava, a negra irmã ceifava. O deve e o haver das duas nunca falhava.
O Contabilista jamais aceitaria ou permitiria que estas contas dessem diferente de zero.

A Morte quando reflectia no assunto sabia que no fundo a culpa não vinha directamente da extrovertida irmã, mas sim das consequências do que ela punha neste mundo.
A questão estava toda na evolução das tecnologias.

Os carros estavam mais seguros, havia menos suicídios, as crises já não desesperavam tanto as pessoas, a saúde estava cada vez melhor e as pessoas demoravam mais tempo a morrer.
As penas de morte estavam a desaparecer aos poucos e poucos, Até a malária e a SIDA já tinham sido mais amigas que agora. O ébola ainda era eficaz mas apenas esporadicamente.
Detestava a AMI e afins e as vacinas espalhavam-se como uma praga.
Como uma peste, emendou a Morte na sua reflexão.


Como todas as Mortes precisava da sua dose diária de almas. Quando esta falhava ou era menor que do que precisava, a Morte ressacava.
Nessas alturas brandia a foice no ar como se quisesse decepar a estouvada da Vida que não pensava nas necessidades da irmã gémea.
Então decidiu fazer aquilo que as Mortes de todo o mundo eram ensinadas desde pequenas a evitar: os Arco-Íris.
Procurar um é como espreitar para debaixo da cama onde todas as crianças sabem que é lá que o bicho papão vivia. Não se escapa ao seu abraço que as leva para o grande buraco.

Sempre com os pés a arrastar, a Morte dirigiu-se ao Vale das Cores. Era aqui que eles viviam. Era local muito agitada. Havia sempre Arco-íris a entrar e sair do vale. A Chuva estava sempre mandá-los para os lugares que ela queria. Cumpriam a sua missão e voltavam para o Vale.

A morte escolheu o maior deles. O mais brilhante, mais intenso, o que tinha as cores mais bem definidas.
Subiu ao Arco-Íris e esperou. Num ápice a sua tez pálida adquiriu novas cores. Laranjas, azuis, vermelhos. Teve morte imediata. Os Arco-Íris são implacáveis com as Mortes.

O Destino, soube imediatamente o que tinha acontecido e sorriu.
Com a ceifas a estenderem-se cada vez mais no tempo, estava a enfrentar um excedente de Mortes.
É difícil despedir uma Morte. Estão muito protegidas pelos sindicatos e não é possível adaptá-las para outras funções. E ninguém as queria como colegas de trabalho.

Além que o Contabilista tinha-lhe dado insistentes recomendações para baixar as despesas do seu orçamento no subsector Mortes & Coveiros.


Inkheart


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