É tão fácil gostar desta canção.
A letra é densa e complexa, mas repleta de delicadeza como um dente de leão quando é soprado por uma brisa gentil.
Quando o dia entardeceu E o teu corpo tocou Num recanto do meu Uma dança acordou E o sol apareceu De gigante ficou Num instante apagou O sereno do céu E a calma a aguardar lugar em mim O desejo a contar segundo o fim. Foi num ar que te deu E o teu canto mudou E o teu corpo do meu E uma trança arrancou O sangue arrefeceu E o meu pé aterrou Minha voz sussurrou O meu sonho morreu Dá-me o mar, o meu rio, a minha calçada. Dá-me o quarto vazio da minha casa Vou deixar-te no fio da tua fala. Sobre a pele que há em mim Tu não sabes nada. Quando o amor se acabou E o meu corpo esqueceu o caminho onde andou Nos recantos do teu E o luar se apagou E a noite emudeceu O frio fundo do céu Foi descendo e ficou. Mas a mágoa não mora mais em mim Já passou, desgastei, pr'a lá do fim É preciso partir É o preço do amor Pr'a voltar a viver Já nem sinto o sabor A suor e pavor Do teu colo a ferver Do teu sangue de flor Já não quero saber... Dá-me o mar, o meu rio, a minha estrada, O meu barco vazio na madrugada Vou-te deixar no frio da tua fala Na vertigem da voz quando se enfim se cala
A voz de Márcia não fica atrás da letra e a voz grave e arrastada de JP Simões é o contraponto ideal à voz da sua parceira, completando e complementando-a sem no entanto destoar ou perturbar o ambiente que esta música tem, muito pelo contrário.
A guitarra está de igual para igual com as vozes e a letra, subtil e igualmente delicada. Que grande música!
A morte tem destas coisas. Por ela fui procurar dois álbuns de Bernardo Sasseti que já os conhecia mas que não os tinha.
Isto chateia-me porque isto significa que fui ultrapassado pela morte. Na verdade já deveria ter Alice e Ascent há bastante mais tempo, quando Sasseti era vivo. É assim que se prestam as verdadeiras homenagens, em vida.
Eu gosto da elegância, gosto da delicadeza e do minimalismo Gosto da economia de gestos, de palavras, de notas. Gosto da discrição. Gosto de quem traz a luz, sem estar debaixo dos focos da ribalta.
Por isso gosto tanto de Sasseti. Ele era tudo isto. E mais, era genial.
Não sendo no entanto um ignorante, mas sem conhecer extensivamente a obra de Sasseti, encontro em Alice e Ascent, todas as características que enumerei.
O minimalismo elegante da música, a sua beleza discreta mas poderosa. Universos musicais dos quais uma vez se entrando não apetece sair e quando se sai ansiamos por lá voltar.
A primeira vez que ouvi Alice a sério, os meu olhos tornaram-se brilhantes de água.
É a banda sonora composta para o filme homónimo que conta a história de um pai cuja filha, Alice, desaparece na cidade de Lisboa.
Sasseti retrata na perfeição o rosto e a urbanidade de Lisboa.
É um trabalho muito imagético. Os ruídos da cidade, o seu arquejar, a chuva que cai, carros que serpenteiam atrás de outros, passos que seguem outros passos, rostos que não olham para outros rostos, fechados em pensamentos individuais.
A vida repetida e anónima que corre e prossegue indiferente ao drama, à angustia isolada e à respiração ofegante de Mário que percorre a cidade à procura de Alice.
Através da música de Sasseti sentimos a solidão e a angustia deste pai que solitariamente procura incessantemente a filha, mas no entanto fazendo-o de uma maneira quase obcecada,ele não a torna excessivamente dolorosa ou inquietante. Pelo contrário. É elegante, simples e bela.
Sasseti expurga da sua música o acessório e faz-nos concentrar apenas na simplicidade das emoções lentas e melacólicas do seu piano, do clarinete de Rui Rosa e do contrabaixo de Yuri Daniel.
O segundo álbum que comprei este fim de semana foi Ascent.
Sasseti consagra em Ascent, duas grandes paixões suas: o jazz e o cinema, a música e a imagem.
Ele utiliza aqui dois trios. Daí o dois que aparece na capa do álbum. A uni-los está o piano de Sasseti.
O primeiro trio é o mais clássico que o jazz pode oferecer. Um piano, um contrabaixo e uma bateria.
O segundo aproxima-se da música de câmara. É constituído pelo piano, um violoncelo e um vibrafone e expõe a vertente cinéfila deste álbum, recuperando com novas roupagens, temas que fizeram parte de bandas sonoras Bernardo Sasseti para filmes como A Costa dos Murmúrios.
Também à semelhança de Alice, o contido Ascent, recorre à introspecção, ao minimalismo e à elegância da sua música para chegar ao nosso âmago.
Fá-lo de novo, de uma maneira sublimemente suave, quase se nos apercebermos que está a fluir por nós a melhor música que se faz em Portugal.
E sempre que o expressivo violoncelo de Adja Zupancic se faz soar, algo de mágico, algo de extraordinário acontece. Oiçam-no e percebem o que quero dizer.
A faixa que encerra o tema, Da Noite ao Silêncio, o violoncelo é absolutamente essencial na caracterização daquela que é para a mim a música mais bonita de Ascent. O som arrastado e lamentoso a lembrar chuva a a bater e a escorrer numa janela (já olharam para a capa?).
Mas como já tinha colocado Da Noite ao Silêncio, aqui, escolho agora Do Silêncio Revelação. O tema que abre Ascent.
Para além do delicado piano de Sasseti, do maravilhoso violoncelo de Adja e do subtil vibrafone de Lezé, o silêncio, no arranque do tema, é por ele próprio um instrumento não menos belo e importante que os restantes.
Comprei estes dois álbuns no fim de semana passado.e têm sido minha companhia habitual nas minhas noites.
Cada vez que os oiço deleito-me com os seus sons, com as suas nuances e a cada audição descubro sempre algo de novo. O que me faz de retornar sempre a eles.
São dois álbuns que se ouvem de olhos fechados e de alma aberta.