Olhando lá para fora vejo um céu misto de azul com cinzento e poucas nuvens, o sol a brilhar, a temperatura já baixou mais ainda, não o suficiente para me impedir de abrir as portadas da minha sala e deixar uma corrente de ar fresca invadir a minha casa.
Está portanto um tempo muito pouco de Outono.
Apenas a minha carrinha carrega sinais desta estação, porque faço questão de não tirar as folhas castanhas-amareladas que vão caindo e cobrindo os seus vidros e tejadilho.
A previsão meteorológica diz que o tempo vai mudar para este fim de semana. Chuva, céus nublados, temperaturas vão continuar a baixar e há possibilidades de trovoada. Neve nas terras altas acrescentam os meteorologistas.
Diria que se aproxima o tempo ideal para ouvir Voltar de Rodrigo Leão, um músico que esteve ligado a dois projectos musicais muito importantes para mim, Sétima Legião e Madredeus antes de assumir uma carreira a solo.
Voltar é um tema que simboliza o Outono por excelência. Quer pela sua letra e pela nostalgia que ela carrega, quer pela cadência lenta e triste da música e principalmente pelo lamento do acordeão e pela suavidade da voz de Ana Vieira.
Tem o poder de soltar esta estação em qualquer momento que eu oiça esta canção. Quer seja um dia florido de primavera, um soalheiro dia de verão ou um dia gélido de inverno, será sempre um dia de Outono.
E como já estamos na sua época... soltemo-lo. :)
Voltar está incluído no cd de colectâneas de Rodrigo Leão chamado Mundo (1993-2006).
Há neste vídeo de um duplo atropelamento de uma criança com dois anos de idade no mercado da cidade chinesa de Foshuan, duas brutalidades: a do acto em si e a mais atroz delas, a indiferença das pessoas.
É difícil explicar e ainda mais tentar compreender como se chega a este ponto.
Pode sempre invocar-se que a China está virada cegamente para a produção.
Pode invocar-se que o controlo estatal que o regime comunista chinês exerce sobre as populações as embrutece.
Pode invocar-se que a China sendo um país extremamente assimétrico e desigual no seu desenvolvimento cria, por habituação, uma apatia e indiferença ao abandono, à exclusão social e logo ao sofrimento individual.
Penso que o facto de esta brutalidade ter acontecido na China tem alguma relevância pelo que escrevi acima e apesar de ser tentador e fácil reduzir este acontecimento apenas a este país não creio que deva ser feito.
O problema certamente não será só chinês, será tendencialmente global e muito provavelmente semelhante nos seus motivos.
As nossas vidas neste momento estão particularmente formatadas.
Estamos tão virados para o pagamento de impostos, para estatísticas e percentagens, para o desemprego que aumenta, para os sacrifícios pessoais que estão sempre a serem pedidos, tão absorvidos na nossa sobrevivência física e social que sobra pouco tempo e espaço para o sofrimento alheio.
O virar a cabeça para o lado e acelerar o passo é mais útil. Causa menos problemas do que o sentido da ajuda do próximo que agoniza aos nossos pés.
Porque se fazem menos perguntas, porque custa menos tempo e logo produz-se mais, porque não se enfrenta burocracias e logo produz-se mais, porque não se chega atrasado ao nosso destino que até pode ser o nosso emprego e logo produz-se mais, buscar um filho a um infantário que fecha demasiado cedo ou uma promoção de apenas um dia de um artigo qualquer num supermercado qualquer mas que tem que ser aproveitada e que faz falta em nossa casa.
Estamos todos muito fechados e concentrados em nós próprios, nas nossas tarefas e mais uma vez na nossa sobrevivência. Não vemos um palmo à frente dos nossos olhos. Estamos cegos e por necessidade tornamo-nos progressivamente e perigosamente mais egoístas e mecanizados.
Mas mesmo assim não consigo perceber como é que a indiferença, como é que a ausência de consciência, ética e valores morais podem atingir níveis tão monstruosamente altos como neste atropelamento que aconteceu em Foshuan, China.
Há dois dias atrás celebrou-se o dia internacional para a erradicação da pobreza.
Foi instituído pela ONU a 22 de Dezembro de 1992 com o propósito de lembrar a comunidade internacional para este flagelo e é comemorado anualmente a 17 de Outubro.
Sou pouco crente neste dia. Acredito que não é feito tudo o que se pode fazer e o que é feito enferma de interesses financeiros e políticos escondidos.
Muito deles com origem na própria classe dirigente dos países mais afectados pela pobreza que absorve em seu proveito ou impede muita da ajuda humanitária enviada chegar aos seus destinos.
Por isso tinha decidido deixá-lo passar em branco. Mas entretanto dei de caras com esta imagem que reflecte muito bem o que eu penso sobre a natureza de boa parte dos esforços de erradicação da fome à escala global.