sábado, 15 de janeiro de 2022

uma música para o fim de semana - Padeirinha (B. Fachada)


O meu avô era padeiro e pasteleiro.
Começava a trabalhar ao final da tarde e regressava a casa de manhã, bem após o nascer do sol.
Quando acordava, uma das coisas que fazia era ir ver ao armário dos bolos o que o meu avô tinha deixado nele - eram as sobras da noite anterior - o que não tinha sido vendido, num prato. Nele encontrava pasteis de nata, mil folhas, jesuítas, bolas de Berlim, guardanapos, croissants e outras surpresas.
O pão era sempre fresco e estaladiço. Tinha aquele sabor delicioso de pão cozido na lenha, amassado com esforço e alma.

Nos principais dias de festa como o Natal, Ano Novo, Reis e Páscoa, os seus dias de trabalho frequentemente duravam 20h, 24h. Trazia nele o cheiro das farinhas, das massas, dos cremes de pasteleiro. Um cheiro, mais aroma, muito característico.
Por vezes, sem ter tempo para se mudar na padaria, chegava ainda com o seu fato de trabalho: casaco e calças largas, de tecido azul roçado pelo uso, com nódoas e manchas de dias bem compridos.
Riamo-nos quando adormecia facilmente à mesa ou nos sofás após as refeições. Mas sabíamos bem o porquê. E quando se ria, todo ele se mexia. Mais que os lábios, era todo o corpo, baixo e redondo, que se ria.

Esta canção de B. Fachada, pertence ao seu mais recente trabalho Rapazes e Raposas, chama-se Padeirinha, mas ao ouvi-la ouço sempre o Padeiro.
A letra retrata bem a sua longa vida e dedicação do meu avô à sua profissão.
Joaquim, era o seu nome.

Bom fim de semana 😉






Padeirinha noite dentro
Água, farinha, sal e fermento
Noites cheias, vida fora
Do que sabem as mãos pelas mãos se melhora
Do calor que pões no forno
O pau é de sobro, as paredes são grossas
Amanhã ainda 'tá morno
Padeirinha do fogo não te sobra p'ra galhofas

Descansas à tardinha, padeirinha
Começas à noitinha e vais até de manhãzinha
Descansas à tardinha, padeirinha
Começas à noitinha e vais até de manhãzinha

Padeirinha autodidacta
Quantos pães fizeste à bruta?
Quantos sairão azedos
De suor e de segredos?

Se a manhã já te apanha de bruços
Aos primeiros azuis
E no ar um cheirinho a queimado
Padeirinha, tem cuidado
Não te faças rogada à cobrança
Que é como diz o Sancho Pança
O abade aonde canta, janta

Descansas à tardinha, padeirinha
Começas à noitinha e vais até de manhãzinha
Descansas à tardinha, padeirinha
Começas à noitinha e vais até de manhãzinha

Padeirinha noite dentro
Água, farinha, sal e fermento
Noites cheias, vida fora
Do que sabem as mãos pelas mãos se melhora

Se a manhã já te apanha de bruços
Aos primeiros azuis
E no ar um cheirinho a queimado
Padeirinha, tem cuidado
Não te faças rogada à cobrança
Que é como diz o Sancho Pança
O abade aonde canta, janta

Se a manhã já te apanha de bruços
Aos primeiros azuis
E no ar um cheirinho a queimado
Padeirinha, tem cuidado
Não te faças rogada à cobrança
Que é como diz o Sancho Pança
O abade aonde canta, janta








sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

uma citação (em mês de eleições)


Vi o debate entre Costa e Rio. Mais do mesmo.
Também vai fazer mais do mesmo quem quer que vá assentar o cú na cadeira do poder.

No dia 30 deste mês, todos irão, excepto uma minoria esclarecida, seja ela de esquerda ou direita; os acéfalos do Chega não contam para qualquer tipo de esclarecimento; ou para um, ou para o outro lado.
E como um anónimo, não, não foi Einstein, afirmou:

Insanidade é continuar a fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes









quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Contágio - David Quammen


É dos livros de divulgação científica mais fascinantes que jamais li.
Se quiserem conhecer o mundo dos vírus, como estes surgem, se mutam, como se transmitem, as suas características, histórias, os nomes das pessoas que os estudaram, investigaram e que com eles sofreram, Contágio é O livro.

Como qualquer livro que divulgação científica que se preze, David Quammen; escritor, divulgador de ciência e explorador norte-americano; aborda e lida com conceitos complexos de uma forma simples e prática. Termos como contágio, mutações, proteínas, ADN e ARN, reservatórios, testes PCR, vacinação e outros tantos que se foram tornando (infelizmente) familiares para nós nos tempos que se vivem actualmente, mas ainda assim desconhecidos nos seus significados, são bem explicados e contextualizados.
O autor tem bem a noção de quando estamos perante conceitos mais complexos e de uma forma bem-humorada diz-nos, e sossega-nos, que são poucos os que os dominam.
Tem um ritmo quase alucinante de escrita e a narração é precisa e acutilante. Não desperdiça palavras nem as torna ocas ou fúteis.

É incessante a chegada de informação das suas quase seiscentas páginas e o desejo de continuarmos a ler é tão grande quanto a necessidade de pararmos um pouco para respirar mais fundo antes de mergulharmos de novo nele. É viciante. Dei por mim a ter que ler algo diferente para não me deitar com Contágio na cabeça.
Tal como um livro de viagens, com ele passeamos por todo o mundo. Particularmente pela Ásia e África, por vezes Europa e Austrália. Conhecemos cidades, aldeias, rios, florestas, cavernas, quintas e subúrbios. 

Em cada capítulo (são nove) aborda em detalhe um determinado vírus mas não exclusivamente esse vírus. Isto significa que o nosso conhecimento tem sempre um horizonte aberto mas não a perder de vista.
Alguns dos vírus e respectivas doenças já são nossos conhecidos. Num determinado momento, devido à dimensão dos surtos, da intensidade das consequências, foram notícia nas televisões, em jornais ou nas redes sociais: ébola, malária, sida, gripe espanhola, herpes são familiares para nós. Outros nem tanto. Ou porque os seus surtos foram de pequenas dimensões, foram breves no tempo ou geograficamente afastados do ocidente, tais como: Hendra, Lassa, Marburgo, Machupo ou o Nipah. Ficamos também a saber que têm diversos nomes, pertencem a famílias e têm características e diferentes taxas de letalidade e mortalidade. 
Ouvimos demasiadas vezes a palavra coronavírus que ficamos a pensar que só existe este no mundo, mas de facto existem outros, muitos outros: hantavírus, retrovírus, filovírus, adenovírus, etc..., etc..., etc...

Percebemos que a complexidade dos vírus, cuja discussão se é um ser vivo ou não ainda permanece apesar de genericamente não ser considerado como um, é gigantesca e frequentemente parece ter "vontade própria e inteligência". Ficamos saber que ele necessita de um hospedeiro para poder reproduzir-se e fazer multiplicar o seu código genético. Por si próprio ele não o capaz de fazer. É aqui que entram os defensores de que não deve ser visto com um ser vivo.
O seu tamanho é tão pequeno que só no primeiro ano da década de trinta do século passado se descobriu a sua existência física - há muito que se sabia quais eram os seus estragos - com a criação do microscópio electrónico. As suas dimensões medem-se em nanómetros. Para se chegar chegar a este comprimento é preciso pegar num milímetro e dividi-lo um milhão de vezes.

David Quammen ao longo das suas páginas conduz-nos igualmente pela história, pela antropologia, sociologia e climatologia. Ilustra perfeitamente a relação, frequentemente desastrosa, dos vírus com os seres humanos. De como os nossos hábitos e cultura influenciam e foram influenciados pelos mesmos. Aborda a importância dos xamãs, de feiticeiros e curandeiros, das superstições, da importância da sobrevivência e subsistência dos seres humanos e do funesto comércio e tráfico de animais. Mostra que a subida da temperatura global propícia as condições favoráveis para que os vírus e seus hospedeiros das florestas tropicais, um autêntico viveiro deles, se aproximem dos nossos ambientes tornando cada vez mais provável o contágio que o título do livro se refere. O autor usa frequentemente o termo inglês "spillover". Spillover, termo talvez mais adequado que a tradução contágio, refere-se ao momento em que um determinado vírus (ou uma bactéria) passa, migra, para o corpo de uma nova espécie. Neste caso, nós, humanos. Quando este acontecimento ocorre de um animal para o ser humano define-se como uma zoonose. O contrário designa-se por antroponose. Dois termos igualmente bem explicados no livro.

Escrito em 2012, sim é verdade vai fazer 10 anos, Contágio não é um livro "oportunista" que vive do momento actual. Nessa altura avisava como a nossa relação destruidora e desrespeitosa para com os animais, com os seus habitats e ecossistemas, a desflorestação, as alterações climáticas potenciam cada vez mais a possibilidade de ocorrências de pandemias. De como trazemos, os vamos "buscar", os vírus até nós, até às nossas sociedades rápidas e globalizadas, às cidades evoluídas mas saturadas de gente.

Por ter sido escrito bem antes desta pandemia, houve uma actualização do livro com a introdução de um breve capítulo ao SARS-COv-2 numa altura em que, quer este, quer a doença, não tinham nome, sabendo-se apenas que era um coronavírus. 
De novo em 2012, Quammen avisava no seu livro que a próxima grande pandemia poderia ser causada por um coronavírus. E como também já ouvimos várias vezes pelas vozes de especialistas, pela forma abusiva e invasiva como nos relacionamos com o mundo natural, haverá mais para vir. Talvez ainda de uma forma mais destruidora para nós.

Ler Contágio é igualmente uma lição de humildade que a humanidade insiste em não querer aprender. Até ao dia...
Indo bem para além da entrada no segundo ano consecutivo da pandemia causada pelo SARS-COv-2, e sob qualquer circunstância, a sua leitura é imperdível.