terça-feira, 2 de setembro de 2014

conversas com o Abismo


conversas com o abismo

- Olá Humano.
- Olá Abismo.
- Porque me olhas dessa maneira?
- Atrais-me. Quero perceber-me.
- Quanto mais olhas para mim, mais eu olho para dentro de ti.
- Sei disso. É justo.
- E olhando-me consegues o que almejas?
- Parcialmente. És fundo e escuro. Um vazio.
- Tal como tu, Humano?
- Sim, como eu. Somos iguais. Mas tu és o que és e eu tornei-me assim.
- Mas és um ser escuro?
- Sei que não sou escuro, mas sinto-me escuro. Convenceram-me e convenci-me disso. Logo sou escuro.
- Humano, isso é uma grande contradição.
- Eu sei. Estou cheio delas.
- E vives bem com elas?
- Vivo. Acredito que ninguém é linear.
- Concordo contigo Humano. E pensas que és um vazio também??
- Sim. Sendo escuro, não vejo o meu fundo.
- Por isso olhas tanto para mim.
- Sim. Somos os dois vazios. De uma maneira intrinsecamente diferente mas vazios na mesma. Olhar-te é ver-me. Tento perceber-te para me perceber. Tento que sejas o meu espelho.
- Mas se não és escuro, apesar de te sentires e afirmares que és assim, não consegues enfrentar, lutar contra o que tu és, não o sendo?
- Tento. Tento todos os dias. Mas sou assim há tanto tempo que me tornei assim.
- Então essa luta diária drena a tua energia. Esgotas-te todos os dias.
- Sim. Muito mesmo, Abismo. Ando sempre mito cansado.
- E como descansas?
- Não descanso. Não consigo. Tento abrandar-me. Abrando-me nas lágrimas, na música ou esgotando-me fisicamente para a cabeça dar mais atenção ao corpo que a ela própria.
- E quem te magoa Humano?
- Eu principalmente e depois as pessoas. Não gosto de estar com pessoas. Não gosto delas. Nem de mim.
- Mas tu és uma pessoa. Não gostas de ti?
- Não. De modo nenhum.
- Porquê?
- Porque também me magoo.
- Fisicamente?
- Em tempos, sim. Agora não. É de outra maneira.
- Não percebo. Explica-me por favor.
- Sinto-me descontextualizado. Como um comboio que saiu fora dos carris normais e entrou nos laterais, pouco usados e não sabe como voltar aos iniciais. O seu avanço é lento e penoso, porque está perdido e não sabe como se encontrar.
- Hummm…
- Sinto-me como um louco que tem uma lógica muito dele que ninguém percebe. Mas na verdade não sou assim.
A diferença é que o verdadeiro louco não sabe que tem uma lógica própria porque acredita nela.
Para ele a sua lógica é a única possível e a única onde pode e sabe viver. São os outros que estão fora dela. Assim ele é auto-suficiente e imune ao exterior.
- Continua. Estou a ouvir-te.
- Também tenho a minha lógica própria, o meu toque de loucura. Que também não é a dominante, é diferente da que impera. Logo estou do lado de fora. Mas ter a consciência disso resulta numa exclusão e também numa auto-exclusão. Sou um louco mas sei que não o sou. Mas para os outros sim.
- Mais contradições.
- Disse-te que não era uma pessoa linear.
- Sim, lembro-me disso.
- Olhar para ti é bom. Não tens fundo ou é um fundo distante. Esvazias-me a cabeça. És o meu elemento absorvente da matemática. Como um deserto sem fim. Uma longa esteira amarela que seca e mirra os pensamentos.
- Dás-me vontade de sorrir, Humano.
- Bem podes fazê-lo.
- Tenho vontade, mas não sei como fazer. Os Abismos não sorriem. Porquê dizes isso???
- Ao contrário de ti, eu não sei o que sou. Só sei o que não sou.
- Compreendo-te.
- Creio que não Abismo. Há uma grande diferença entre nós. Tu és genuíno. És o que se espera de ti. És o que deves ser. Uma vertical descendente, longa e negra sem fim.
- Sim. Sei que sou um Abismo. É essa a minha natureza. Sempre o serei. Isso é reconfortante para mim. Saber o que devo ser e sê-lo.
- Fascinas-me por isso e também por isso gosto de olhar para ti.
- E saltares para os meus braços? Já pensaste nisso?
- Já. É tentador Abismo. Há quem o faça.
- Sim de facto há.
- Sabes que quem salta para dentro de ti não pretende morrer??
- Mais contradições???
- Não diria uma contradição mas sim um paradoxo. Quem o faz, acima de tudo pretende deixar de sofrer.
- Faz sentido. Mas resulta na sua morte de qualquer maneira.
- Um dano colateral permanente que resulta de uma lógica muito peculiar.
- Humano, não te percebi agora.
- A pretensão prioritária de um suicida é o parar de sofrer e não procurar a sua morte. Se bem que a solução encontrada inevitavelmente acaba por resultar nela.
Um suicida é na prática um assassino que atenta contra a vida de si próprio. É assassino e vítima em simultâneo.
- Curioso. Faz sentido.
- Sim faz. Mas para não sofrer não preciso de mergulhar em ti.
- O que necessitas em então?
- De Beleza.
- O que defines por Beleza?
- O que é delicado, frágil, que conforta. O que entra na minha alma e a pacifica. Como um leve perfume que entra em nós mas não nos invade nem fere o olfacto.
Como um céu estrelado numa noite límpida, aquele aroma a terra que se solta nas primeiras chuvas de Outono, uma pintura e uma escultura feitas por grandes mestres, uma paisagem deslumbrante, uma montanha nevada, uma música serena ou um livro bem escrito e cuja história fale comigo.
- Gosto da tua solução. Ela traz paz consigo. Consigo senti-la nas minhas profundezas, no meu âmago. E eu falo contigo?
- Sim, falas. Por isso me atrais tanto.
- Porque sou belo?
- Exactamente. E fascinante também.
- Por eu não ter fundo ou ele ser muito distante?
- É mesmo por isso.
- E não tens medo de mim, da queda, do preto que me pinta e que me pintam?
- Abismo, gosto tanto do Belo que nunca tenho medo Dele, qualquer que seja a sua forma. Mesmo que seja a tua. Quanto ao preto, não é uma cor de luto ou de dor. Já foi. O preto é elegância, discrição e distinção. Sofisticação até. E conforto.
- A apologia do preto.
- Nem mais. Há algo no preto que me atrai e me conforta. Sinto-me bem com ele e sem ele sinto a sua falta.
- Gosto de ti Humano. Afastas a solidão das minhas costas. Não foges de mim, nem saltas para mim. É um equilíbrio sábio.
- Obrigado Abismo. Também gosto de ti. Gosto da tua simplicidade. Do teu silêncio ouve-se o nosso. És o que és. Como o gato de Fernando Pessoa que brincava na rua.
- Volta um dia.
- Voltarei.


 Inkheart






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