quinta-feira, 14 de agosto de 2014

o homem do chapéu escuro


Era noite e chovia torrencialmente há várias horas. Os candeeiros estavam apagados e a rua prolongava-se indefinidamente.
Os seus passos chapinhavam na água. Lentos. Não eram firmes, nem hesitantes. Despreocupados.
Talvez não tivessem destino traçado ou até poderiam ter, sabendo onde estes iriam acabar. Indecisos entre apressados e a relutância de lá chegar.

Pelo chapéu escuro escorria uma pequena torrente de água que corria para a frente dos pés e fazia salpicar o caminho da mesma maneira que as gotas pesadas de chuva caíam no alcatrão encharcado, estranhamente coberto por um céu de denso breu.
Os seus olhos não se viam por estarem escondidos pelo chapéu que lhe tapava o rosto
Quem espreitasse por baixo dele perceberia que estavam vazios, pensativos, fixos na estrada da cor de carvão.

Tinha as costas ligeiramente curvadas como se carregasse um fardo ou um fadado destino sobre elas.
Um cigarro apagado estava precariamente equilibrado no canto esquerdo da boca. Talvez pela inutilidade de o manter aceso devido à chuva que não parava de cair e que perpassava o escuro chapéu, ou porque não precisasse de estar aceso.

A estrada à sua frente, sem luz que rompesse a entranhada negridão, parecia espelhada por uma prata húmida, densa e obscura, que fazia esconder os seus segredos.
Não se lhe via o fim. Mas a ilusão fazia-a terminar num ponto distante no longínquo horizonte.

Vindo do nada daquela pesada noite, um corvo de penas pretas brilhantes pela chuva que caía, silenciosamente pousou no ombro esquerdo do homem de chapéu escuro. Olhou fixamente para o seu indiferente companheiro durante uns largos segundos sem que este devolvesse o olhar e depois virou os olhos pretos e penetrantes na direcção da rua negra sem fim.

O homem continuou com os mesmos passos. O cigarro mantinha-se apagado no canto da boca e se alguém de novo conseguisse espreitar os seus olhos, perceberia agora que tinham ganho um ligeiro brilho e imperceptivelmente um esgar de um sorriso tinha surgido nos seus lábios.
Com as costas agora direitas  não afastou o corvo. Parecia que esperava a sua chegada e apreciava a sua presença.
O corvo manteve-se no seu ombro ao longo de todo o caminho.

A chuva continuava a cair forte e os passos do homem de chapéu escuro continuaram a chapinhar na água que os salpicavam.
Caminharam os dois assim durante um longo, longo tempo, dissolvendo-se depois onde a negra estrada terminava num ponto sem luz.


Inkheart


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