terça-feira, 31 de dezembro de 2019

um poema de... Carlos Drummond de Andrade (na véspera de Ano Novo)


PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão

E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade



1 comentário:

  1. Feliz 2020 Pedro :-)

    Conhecendo bem Carlos Drummond de Andrade, não me lembro de ler este poema (e agora digo, 'quase bem').

    E foco-me especialmente nesta estrofe:

    "Teu pai morreu, teu avô também.
    Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
    Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
    E de copo na mão
    Esperas amanhecer."

    Sem dúvida, deve ser esse o nosso foco, estar vivo! E agradecer cada 'amanhecer' de sol! Como este!

    Deixo-te a 1ª estrofe do poema de José Gomes Ferreira:

    Vive em cada minuto
    a tua eternidade
    — sem luto
    nem saudade. (...)

    in Eléctrico

    Tudo de Muito Bom para ti, Pedro, neste Novo Ano, início de uma nova década.

    Beijinho
    (sensibilizada pela tua visita a 'fragmentos' e pelos votos lindos!)

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