terça-feira, 24 de março de 2015

um poema de...Herberto Helder



Os adjectivos utilizados são muitos. Genial, misterioso, obscuro, surreal. O poeta Nuno Júdice definiu-o como um poeta "tão diferente, tão vulcânico".
Há muitos que o consideram como o maior poeta português depois de Fernando Pessoa, ou o maior da segunda metade do séc XX.
De facto muito poucas pessoas da cultura nacional, aquando da sua morte, agitaram tanto um país tão pouco cultural como Herberto Helder.

O poeta foi tudo o que se pode imaginar.
Sem grandes preocupações de listar por ordem cronográfica, o que fez na vida é de tirar o fôlego.
Trabalhou em publicidade, foi meteorologista, operário, delegado de propaganda médica. Trabalhou numa cervejaria, cortou legumes.
Viveu na França, Holanda e Bélgica. Viveu na clandestinidade em Antuérpia frequentando o submundo da prostituição onde terá servido de "guia" aos marinheiros que desaguavam nas águas deste porto belga.

Foi responsável das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian.
Em 1971 tornou-se repórter de guerra em Angola, onde um acidente grave o atirou para a cama de um hospital durante três meses. Após uma breve passagem por terras nacionais, parte em 1973 para os Estados Unidos.
Regressa a Portugal em 1975 para trabalhar na rádio e em algumas revistas literárias.

Durante todo este frenesim, Herberto Helder continua a escrever e a publicar.

Consequência destas experiências de vida, a sua poesia é hermética, pouco popular e portanto pouco acessível, até surreal. Plenas de paisagens difíceis de ler e de compreender. Um alquimista das letras.
O seu mundo poético continha dois elementos, dois fascínios, frequentemente presentes na sua obra: a morte e o silêncio.
Não tinha medo da morte. Sabia que um dia se entregaria a ela. Ela que viesse e com ela viesse igualmente o silêncio.

Ontem, com a sua morte, acredito que muitos celebrem mais o seu nome que a sua obra.
Exactamente o contrário que o poeta madeirense desejaria.

É bem conhecida a face excessivamente reservada da sua personalidade. Socialmente auto-excluído.
Rejeitava liminarmente todas as formas de mediatismo. Nomeadamente fotografias, entrevistas, documentários, chegando inclusivamente a proibir os amigos de falarem sobre ele.
Por isto ele criou sobre si próprio uma mística que não desejaria.

Talvez tenha sido por isso a sua morte tenha sido o oposto da sua vida, mediatizada.
E como sempre, e é esse o preço supremo da genialidade, será a sua morte que trará ao cima o seu valor e a curiosidade do grande público. Se era conhecido por poucos, talvez ser torne lido por alguns.

A fotografia que encabeça este post foi tirada pelo fotógrafo Alfredo Cunha, no início deste ano.
É uma das raras e a última fotografia que Herberto Helder permitiu que tirassem.

Foi ontem que a Senhora do Manto Negro, fazendo-lhe uma vénia, o levou nos seus alvos braços. Aos 84 anos.

- Quem diabo terá sido Herberto Helder?? Poeta?? Humm...deixa lá ler qualquer coisa dele.


Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser. 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder


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