quinta-feira, 21 de março de 2013

um poema de... Alexandre O'Neill (no dia mundial da Poesia


O apelido O'Neill dá, talvez insuspeita, uma pista sobre a sua ascendência. Irlandesa.
Mas é em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924 que Alexandre O'Neill nasce.

Em 1947 deixa-se fascinar pelo movimento surrealista de André Breton e Maurice Nadeau. Influenciado pelos seus manifestos funda o Movimento Surrealista de Lisboa.
Desse movimento além de O'Neill e convidados por ele, fariam parte António Pedro, Mário Cesariny, Mário Henrique Leiria, Vespeira e José Augusto-França.

Publica em 1958 um dos seus livros mais famosos de poesia, No Reino da Dinamarca. É neste livro que o consagra como poeta e é onde se encontra o poema Um adeus português.
Conta a história do seu encontro e amor em 1949 com Nora Mitrani, uma surrealista francesa que vem a Lisboa a uma conferência sobre esse tema. 
Alexandre O'Neill e ela apaixonam-se e já em França Nora convida-o a ir ter com ela. Ele pede o passaporte ao governo civil de Lisboa e um elemento da sua própria família denuncia-o. O pedido é-lhe negado e o encontro nunca se concretizou, restando um amor frustrado.
O poeta nunca mais veria Nora e esta em 1961 cometeria suicídio. Em sua honra escreveria Requiem para Nora Mitrani.

Em 1959 estreia-se no mundo da publicidade criando vários slogans. Alguns nunca veriam a luz do dia pela irreverência do seu conteúdo e outros perdurariam até hoje. Um deles é o famoso - Há mar e mar, há ir e voltar.

Morre a 21 de Agosto de 1986 vítima de uma vida desregrada e de excessos. Uma série de acidentes vasculares cerebrais e ataques cardíacos prenunciariam a causa final da sua morte, ataque cardíaco. 

Ilustro o dia mundial da poesia com o poema onde o poeta descarrega a frustração do tal encontro com Nora Mitrani em Paris que nunca chegou a acontecer.


Um adeus português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já petrificada.

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel de uma velha dor.

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver.

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da pressa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual.

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal.

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser.

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não da asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal.

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill


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